domingo, 22 de agosto de 2010

A vida sem poesia 1 de 1

Sempre idealizei a garça como um animal nobre.Talvez pelo pescoço longo, pelo branco celestial da sua penagem, pelas pernas longas que parecem não tocar o chão, pelo bico grande ,amarelo ,simetricamente perfeito e um monte de outras coisas. Um dia, me disseram que as garças só existem, em grande quantidade, onde há muita sujeira.

O local onde eu moro é cheio de garças. Minha casa fica em frente a uma lagoa imensa. A lagoa dos índios. Por que esse nome? Eu também não sei.Talvez alguns índios devem ter morado ao aqui por muito tempo. Com a chegada do colonizadores, as ocas devem ter sido queimadas, as crianças foram assassinadas, as mulheres foram violadas, o homens devem ter caído para proteger as suas famílias.

Ou não.

A lagoa nunca pareceu um lugar imundo. Se o leitor visualizar o local por cima, dificilmente, vai ver rastros de sujeira ou qualquer coisa que profane um verde tão perfeito. Mesmo assim, as garças continuam lá. Aos montes. Eu acho que para cada urubu, existem umas quatro garças. Quando um urubu morre, os seus companheiros não devoram a sua carniça. Essa é uma verdade sobre urubus. As garças devem faze-lo, afinal criaturas lindas não precisam ser nobres.

Um dia, eu acordei completamente apaixonado. Pessoas nesse estado costumam a pensar na vida com mais poesia. A ocasião pede. Nunca tive um olhar poético sobre nada .Não consegui na época e desisti.Em um dos milhares dias perdidos da minha adolescência, eu e muitos amigos da escola viajamos para um daqueles passeios de escola. 7: 45 da manhã e todos deviam estar no pátio da escola para escolher o seus lugares no ônibus. Cheguei um pouco tarde demais e tive que ficar na janela e um casal ocuparia as poltronas do meio e do corredor.

A moça estava inconsolável.Na véspera do passeio, ela tinha visto um bando inteiro de pássaros morrerem eletricutados na hora que ela varria o patio de casa. Ela, então, foi surpreendida, do nada, por uma chuva de pássaros mortos. Ela nunca tinha visto e nem presenciado nada tão terrivel. Enquanto as árvores iam passando por nós em uma velocidade entediante, o rapaz tentava consolar a mocinha, explicando o ciclo da vida, no entanto, pássaros mortos por eletricidade não estão em nenhum livro de biologia.

O rapaz dizia a moça para ela esquecer do triste destino das garças, que a morte não era o pior dos destinos. Ele dizia isso pegando nos cabelos dela, encostando o corpo dele no dela para esquentá-la e lembrar que ele tinha um pássaro mais importante, ainda vivo, pulsante, louco para enxugar aquelas lágrimas e melar o rosto dela com outra coisa. Ela dizia que não conseguia tirar do nariz, o cheiro dos pássaros mortos. Sim, era terrível. Alguns ainda se contorciam no chão antes de morrer, as penas caindo do céu como neve, quando ela tentava fugir, eles batiam no ombro dela.

Ela tomou vários banhos naquele dia. Papai e mamãe a agradaram muito . Papai a pôs no colo e começou a cantar alguma musiquinha idiota que ele sempre ouvia no carro e mamãe fez uma linda torta de limão. Essa torta sempre a conquistou. Quando ela era pequenina, do tamanho de um botão, mimada, amada, linda, desdentada, catarrenta, retardada, egoísta, imunda, estúpida e o mundo parecia ser um lugar apenas grande demais; a torta da mamãe despertava o melhor dentro dela, curava todas as dores e enchia o coração dela de algo que ela jamais soube dizer o nome.

Em um futuro distante, bem distante do que imaginamos, quando as bestas descerem do céu vermelho, quando as carruagens do inferno passearem pela rua, quando toda água do mundo se tornar veneno, quando o corpo dela for chicoteado, quandos os minutos se tornaram horas, quando o sangue dela pingar no chão para ser bebido pelos servos de satanás, quando ela urrar de dor pedindo para morrer; a única coisa que ela vai lembrar é da torta da mamãe.

E dos pássaros mortos.

Vamos voltar ao presente. O namorado na poltrona do corredor, ela na do meio, eu na janela. As pessoas apontavam para uma fábrica desativada. A paisagem agora era de cones. Eu lembro muito das pessoas que estavam no ônibus, mas eu os vi pouco depois que concluí o ensino médio. A vida os tornou professores, estudantes, pais, mães, afogados, suicídas, desgraçados. As pessoas são más e, realmente, não prestam. Porém, a vida é pior. O namorado mostrava uma revista para a namorada. Algumas modelos a encaravam da revista. Magras demais, lindas demais. A beleza delas fez a moça chorar copiosamente e o rapaz deu longo suspiro.

Ele viera preparado para a ocasião. Nossa, como ele havia esperado aquele dia. Papai dissera a ele que havia comido muitas meninas na água de inúmeros terrenos. Para provar ao filho, ele passou a mão no pênis e disse para o filho cheirar o odor vaginal da vitória. Ele cheirou, mas não sentiu nada. O pai, então, disse que o melhor seria chupar para sentir no paladar: o melhor dos sentidos. Ele chupou com muita força o pau do pai, do herói. O gozo quente do pai na sua garganta o tornou um rapaz mais confiante. Cinco gozos desses e ele se tornaria um herói da guerra. Elmo na cabeça e o estandarte com o pau do pai erguido entre as lanças. Ele enfrentaria uma legião de bárbaros, gordos, sulistas, orientais, desgraçados, leprosos, pedófilos, filhos da puta e morreria em glória.

Mas não nessa versão do mundo.

Aqui, a namorada dele está apavorada por causa dos pássaros mortos. Papai o preparou para ser um macho, mas não para ser um coveiro. O destino do nosso ônibus havia sido atingido. As pessoas desciam ansiosas do ônibus e gritavam para o céu. Os pássaros das árvores voavam assustados por causa do alvoroço. A moça se agachou no chão, desesperada. As penas dos pássaros caíam sobre as pessoas. Eu espanei bastante dos meus ombros.

O terreno era cheio de chalés. lá, os rapazes e as moças trocavam de roupa. Menos eu. Passei a estadia do terreno completamente entediado, esperando morrer. O rapaz e a moça entraram em um chalé, sozinhos. Os amigos dele e os amigos dela ficaram ansiosos pelo o que poderia acontecer lá, mas logo esqueciam por causa da chegada dos seus próprios momentos de sexo adolescente selvagem e louco.

Ela vestiu um biquini e mostrou para ele. O corpo em convulsão. No nariz, prevalecia o cheiro dos pássaros mortos. Ele observou a anatomia do corpo dela e fotografou com a mente. Ele a veria muitos anos depois, o corpo dela estaria destruído pelos excessos, pela maternidade e o rosto pelo cinismo da vida. Os olhares iriam se encontrar por alguns segundos, mas nada aconteceria.Nada jamais aconteceria de novo. A vida aconteceria, as novidades se tornariam raridades.

Ele alisou a coxa dela de forma que sempre tentava subir as mãos para dentro do biquini dela e .. .Bem, não vou descrever essa merda. Eles transaram . No fim de tudo, um " você é o amor da minha vida" saiu da boca de um deles. A moça estava mais aliviada. Por alguns minutos, ela esqueceu do horror dos pássaros mortos. Por alguns minutos. Breves minutos. O cheiro estava voltando. Pior, muito pior do que antes. Agora, ela havia violado o luto pelos pássaros morto com a sua luxúria. E os pássaros mortos não a perdoariam por isso.

Os rapazes pulavam na água que espirrava para todos os lados. O sol passava por entre as gotas as tornando coloridas. O som das risadas contaminava o ar. Um tronco imenso era levado pela correnteza. A vida pulsava no tronco: minhocas, musgo, insetos, mesmo assim, ele seria levado pela correnteza e engataria em alguma margem. A natureza que mora nele iria se findar. O tronco secaria e se despedaçaria aos poucos.

Não existe beleza na forma que a vida acontece, não existe poesia no fracasso, nem no amor, nem no sucumbir dos homens, nem nos pássaros mortos. A vida é sem poesia e gosta disso.Todo sonho é interrompido por um susto qualquer. Nós acordamos com corpo cansado, o hálito tomado pela podridão. O sol nas nossas cabeças não nos torna pessoas feliz,es pelo contrário, nos faz suas, seca o nosso cabelo, nos causa câncer.

Os pássaros que deviam ser a prova da dádiva maior de Deus: o poder de voar por aí e só tocar o chão para descansar, são tão burros que sempre morrem eletricutados no primeiro poste de energia. O castigo sempre chega. A maré do horror toma tudos e todos. Os corpos inchados apodrecem na margem e as garças, animais tão belos, arrancam os olhos das órbitas e voam para algum lugar. A morte as espera em algum poste.

O casal sai de mãos dadas do chalé. Eles pisam na terra ainda virgem daquele lugar. Na novelas adolescentes mostra como se usa preservativos, mas não de forma ilustrativa.Dessa forma, a vida acabou penetrando os óvulos da moça apenas para ser arrancado por um gancho terrível em um aborto. Os sonhos dela serão terríveis. O feto escorrendo pela vagina de forma viscosa, subindo pelas coxas , mamando chorume nos seios para depois regurgitar nos lábios de sua amada mãe.

O amante, o deformado amante vai sussurrar nos ouvidos dela o quanto a ama; o quanto o azul do mar parece cinza sem ela; o quanto o canto dos pássaros parece com garfo arranhando um tabuleiro de metal sem ela; o quanto ele ele precisa do liquído amniótico dela saciando a sua sede sem fim. Ela grita. Tanto amor a destrói, a deforma, a faz sentir vontade de vomitar. Ela afasta o filho amante com um empurrão. Ele se esborracha na parede. O sangue dele na parede vira algo parecido com uma teia de aranha.

Mas é um futuro distante. Os rapazes voltam de uma pescaria. Eles voltam com um peixe bem grande. Os professores acendem a grelha para assar o peixe. O pagode começa. Eu olho a paisagem. Bela paisagem. Daqui a algum tempo, ela não vai mais existir ou, se existir, será apenas arvores coníferas. Nada é eterno,aliás estou sendo um pouco radical. A única coisa eterna é a certeza de que tudo vai ser destruído no fim.

Ela se afasta do cheio do peixe assado. O peixe a faz lembrar dos pássaros. Ela se ajoelha em algum lugar da campina e implora por algum sinal divino de Deus, que por sua vez, não tem muito o que dizer a ela. A imagem de Joana D'arc lhe vem a cabeça. A linda Joana D'arc em sua armadura brilhante, guiada pela voz de Deus.

A linda Joana D'arc ardendo em chamas. A fumaça emporcalhando o céu. A gordura escorrendo em um vala. Sem glória, sem vitória. Será que ela ouviu a voz de Deus antes de morrer? Será que ela já ouviu alguma vez na vida ou ela fez tudo aquilo apenas para morrer queimada e a sua fumaça subir na direção Dele. Do Deus de Davi, de Abraão, deIsaac, do holocausto, do pai desonesto que abandona o filho á morte, do sacríficio sem recompensa.

As lágrimas são muitas. É necessário bastante baldes para guarda-las, e se as jogar em alguma vala qualquer, elas se tornarão o próximo mar morto. Onde nenhum peixe nada, nenhuma rocha tem musgo, nenhum pássaro voa. Desta água ninguem irá beber.Aliás, ninguém vivo.

Ela começa a se tocar , enche a cabeça de pensamentos imundos: paus cheios de veias,sodomia, suor, calor humano, saliva, secreção, excreção e tudo mais. Fazer amor adia a morte, disse alguém aí, se tocar traz a morte para a sua cama. Os pássaros mortos não a deixaram mais. Ela desiste. Lava a mão no rio e grita desesperada. Um grito sufocado pelos gritos de felicidade das outras pessoas.

As pessoas comem o peixe de forma selvagem. A coordenadora do passeio suga a cabeça. Eu me recusei a comer. Odeio coisas do rio. Ela olha o peixe com nojo. Quando as pessoas terminam de comer o peixe, os ossos ficam espalhados na mesa . Ela junta todos os ossos dentro de um saco e leva para o quarto.

Na bagagem, ela trouxe uma caixa de sapato, onde ela guardava algumas bolachas. Ela deposita os ossos dentro da caixa , sai do banheiro,escolhe um local bem distante de todos e começa a cavar, cavar e cavar. Quando o buraco está bem largo, ela deposita a caixa e a enterra. "Vá em paz" ela dsse para o peixe, mas ele não respondeu.




Um comentário:

  1. nossa, esse texto foi bem perturbador. as frustrações punheteiras saltaram aos berros em cada parágrafo.
    tu só precisa corrigir melhor os textos.
    mas gostei muito (só não entendi o "1 de 1"?!?)

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