quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A vida sem vaidade 5 de 5: O fim do voto de pobreza

Quebrei o meu voto de pobreza, um dia antes de vir para Macapá. Ele não fazia sentido, aliás, nunca fez. Meu primo me perguntou de onde eu tirei tal idéia e eu expliquei para ele sobre o que eu vi na tv: Pessoas esmagadas contra a grade, lutando para continuar vivas, livres do tédio. Ele me olhou com bastante pena e disse que me levaria no aeroporto.

Minha vó tinha viajado um dia antes da minha partida. Eu cheguei tão bebado da comemoração do aniversário de um amigo que não pude me despedir dela. No entanto, no pequeno tempo que eu fiquei lá, ela anunciou que faria uma obra radical na casa. Iria por tudo no chão e refazer de novo. Fiquei extremamente chocado e lembrei a ela de que obras estressam todos as faixas etárias. Ela nem ligou.

Eu fui até a unidade de polícia do local e me despedi dos guardas e do delegado. Eu também dei o endereço deste blog e expliquei que eu nunca tinha sido do coletivo palafita. Eles riram e me pediram para eu nunca esquecer do número 190. Eu disse que esse número estava gravado na minha pele de tantos baculejos escrotos que eu levei na minha cidade natal. Eles riram, eu também. Não visitei o posto de saúde devido ao meu trauma com o episódio da van.

Voltei para a casa e olhei para a estante da sala vazia. Uns três dias antes, a minha vó começou o processo de encaixotamento das coisas. Tudo que era inútil era cruelmente descartado. Meus primos , minha irmã e eu passamos o dia todo guardando e jogando coisas foras. Um touca de papai noel que a minha vó usava desde a nossa infância foi a primeira a ir para o saco preto de lixo.

As coisas que tinham ficado na casa que pertenciam a minha tia morta foram quase todas descartadas. Alguns óculos berrantes, uns lenços berrantes, alguns documentos velhos. Eu peguei uma carteirinha velha que tinha uma foto dos tempos da faculdade dela e guardei, em segredo, no meu bolso. Sempre preciso de um souvenir dela.

Uma estátua de um gato preto que eu sempre gostei de ver, desde criança, caiu no chão e foi removida para nós não pisarmos nos cacos. Livros dos tempos da faculdade dos meus tios e da minha mãe foram empilhados e levados para o lixo." Esses livros estão defasados", explicou a minha irmã.

Havia um quadro, perto da escada que a minha vó quebrou a moldura, rasgou a gravura e depois jogou dentro dos sacos de lixo. A regra era se livrar de qualquer coisa velha demais. Dos relógios velhos que ficavam na sala de janta, apenas o mais moderno e adequado( ele mede a temperatura) iria ficar na casa nova.

Biblias e mais bíblias foram para o saco. Assim, como um cachorro de pelúcia que eu gostava de brincar muito na minha infância. Uma boneca estranha que a minha vó chamava de Maria-sete-saias ficou na mesma caixa que nossa senhora de nazaré e uma foto minha de quando eu era um bebê gordinho feliz.Eu imaginei como a obra seria violenta. Sim, seria terrível. Imaginei o vidro das janelas sendo quebrados, as paredes sendo derrubadas por uma máquina qualquer, a escada de madeira sendo despedaçada até não restar mais nada. É triste demais ver um lugar pela última vez.

Eu viajei para Macapá, durante um daqueles vôos da madrugada.Tudo muito tranquilo demais, sem tremores, sem oscilações. Que bom. Uma queda certeira iria tirar a minha vida de forma terrivelmente rápida e eu acho que ainda não quero morrer. Cheguei em casa, esperei pela minha cadela morta para me recepcionar. Ela não veio. Ela morreu.

Eu troquei de roupa e tentei dormir. Não consegui. Fiquei com os olhos fechados, tentando contar carneirinhos, mas eu sempre tenho sonhos terríveis com carneiros. Jesus era um carneiro. Será que um dia, eu vou imaginar vários dele, saltando cercas, enquanto sangra de forma louca? De qualquer forma, não seria bom para dormir.

Depois de um bom tempo, o sono começou a vir. Mas antes, eu lembrei de uma cena. A última cena do Útinga. Um dia, antes das obras da primeiro de dezembro começarem, o governo delimitou que algumas coisas teriam que sair para a nova rua entrar. Muitas pessoas tiveram que mudar de casa. Minha tia mal tinha concluído a construção da casa dela, quando recebeu a notificação que a casa teria que sair de lá.

Uma ávore particulamente grande foi condenada. Sempre achei árvores coisas meio inúteis, afinal, elas não latem, nem emitem luzinhas engraçadas.Um dia, alguém me disse que as ávores, assim como brilho das estrelas, são testemunhas de um passado remoto, distante, incontavel, fora dos nossos padrões de sei lá o quê.

Talvez, seja verdade.

As raízes dessa árvore eram fincadas na terra de uma forma absurda. Fora da terra, elas mediam uns cinco, seis metros de cumprimento. Por baixo da terra, esse tamanho devia ser bem maior. Para derrubar a ávores, foram necessárias muitas cordas amarradas em seu tronco. Os homens puxavam de forma louca para derrubar o gigante.

As pessoas saíram do conforto de suas salas para ver a cena. O chão começou a tremer. As raízes estavam sendo arrancadas do chão.Todos estavam fora das suas casas, quando a árvore começou a cair. Alguns tiravam fotos com o celular e eram assaltados logo em seguida. Era uma cena para recordar.

A árvore atingiu o chão. O som da queda foi amplificado pelos diversos tubos de tratamento de água que haviam por ali. As pessoas tamparam os ouvidos. Uma nuvem de poeira subia e cobria tudo. Uma mulher soluçava. Quando a nuvem de poeira baixou, as pessoas voltaram para as suas casas. Um morador ficou irritado demais pelo fato de ter perdido uma mensagem de jesus dita por um médium famoso.

" O barulho da porra da árvore foi alto demais" afirma o morador.








2 comentários:

  1. perfeito.
    esses 2 últimos textos justificaram toda a série.

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  2. "Todos estavam fora das suas casas, quando a árvore começou a cair"

    "Um morador ficou irritado demais pelo fato de ter perdido uma mensagem de jesus dita por um médium famoso."

    comico. Por isso que digo que todo paraense é bicho besta

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