quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Um conto amapaense.

Quando minha mãe completou 22 anos (a minha idade hoje), ela foi forçada a vir para Macapá. Trabalho. Belém, naquela época já estava cheia demais e uma das verdades sobre o mundo é que sempre existiram dentistas demais para poucas arcadas dentárias. Então, ela atravessou o rio. Deve ter sentido medo. Minha família é cheia de covardes, ansiosos e histéricos. E outra verdade sobre o mundo é que o rio amazonas sempre é cruel demais no primeiro semestre do ano.

Minha mãe residiu, na sua chegada, na Avenida Presidente Vargas 2348, entre Hildemar Maia e Santos Dummont, Bairro Santa Rita (na época, um lugar cheio de poeira e casas de madeira). Nasci perto dali, uns dois anos depois, no Hospital São Camilo. Segundo filho, o primeiro morreu antes de sair do útero. Enforcou-se com o cordão umbilical e foi o primeiro suicida amapaense que eu ouvi falar. Perder um filho deve ter sido meio traumatizante para a minha mãe, pois ela fumou e bebeu bastante durante a minha gravidez.

Nasci uma criança doente. Um substituto fraco e doente para um primogênito que morreu antes de assumir o seu reinado no coração dos pais e avós. Minha família materna culpou Macapá da minha falta de saúde e da morte do meu irmão. Normal. Um raciocínio lógico deve ligar uma falta de asfaltamento a uma falta de médicos competentes. Tendo esse primeiro desgosto, quase todos os nossos problemas foram relacionados ao fato de morarmos aqui.

Cresci com o ódio da minha família por essa cidade em meu coração. Odiava, desde bem pequeno, cada buraco, cada pessoa com cara de caboclo, cada vala ao ar livre, cada açaizeiro, cada cachorro em deposição que pudesse vir dessa cidade. Eu costumava lembrar a lenda de Rômulo e Remo, os fundadores de Roma que foram criados por uma loba. “Bem, Macapá deve sido criado por alguém que mamou no peito de uma paca ou de uma cutia”, eu dizia.

Minha chance de sair daqui, veio aos meus 18 anos. Iria atravessar o rio e morar em Belém. Livre do cativeiro que Macapá representava para a minha pessoa na época. Então, eu fui embora. No Pará, minha tia agonizava de câncer, arrancava tufos de cabelo e amaldiçoava o barulho dos carros que a assustavam quando ela tentava dormir. Pensava que seria uma boa idéia se ela viesse para a minha residência aqui em Macapá (moro no Cabralzinho aqui) e pudesse descansar com a total ausência de barulho de carros. Mas acho que ela odiava Macapá o suficiente para continuar se assustando com barulhos de carro. Morreu no ano seguinte, em um hospital referência de Belém, um tumor gigante deformava o seu rosto, o caixão estava fechado na hora do velório.

Fora da minha cidade, enfrentei as adversidades cruéis da vida. E, claro, fui derrotado por todas elas. O mundo e as pessoas sempre lhe dão a oportunidade de saber que tudo pode ser mais cruel e horrível do que já é. Claro que uma pessoa obstinada, destemida, sagaz e magnífica pode superar tais desafios com bravura. Mas não sou um desses. Na verdade, me irrito com pessoas assim. Meu avô paterno possuía uma vizinho bastante obstinado, corajoso e mentiroso. Acho que ele chegou na presidente Vargas quase ao mesmo tempo que o meu avô.Ou não. Uma verdade sobre a veracidade dos fatos é que ela não me interessa nem um pouco.Este vizinho gerou diversos filhos e um bom legado. Alguns filhos com um bom legado para a vida toda, outros nem tanto assim. Morreu da mesma forma que eu morrerei daqui a algum tempo, sendo uma piada sem graça para os seus herdeiros.

Voltei para Macapá no segundo semestre de 2005. O fracasso marcado com ferro e brasa no meu lombo. Fui recebido com a graça que todo filho dessa terra de fracasso, onde o grande herói Cabralzinho é a única estatua que brande uma espada, concede aos seus filhos pródigos. Abençôo, hoje, cada vala aberta, cada cachorro morto se decompondo na rua, cada boca suja e infecta de açaí, cada rotina triste e repetitiva. Jamais irei embora da minha amada e pobre cidade outra vez. Irei morrer aqui, afogado no liquido amniótico do rio amazonas, sufocado pelo cordão umbilical, como fez o meu irmão.