sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O calendário

Os meus tios acharam que era uma boa idéia trazer a minha bisavó para morar em Macapá. Ela havia morado a vida toda em um pequeno sítio no interior do município do Amapá. Lá ela criou a minha avó e tudo mais. O principal argumento ,a favor da mudança, era o fato de que o lugar não tinha bons hospitais para uma pessoa idosa. Minha bisavó odiou a idéia, mas confiou nos filhos, pois eles haviam feito um curso superior, diferente dela.

No lugar do vasto sítio que ela ocupava no Amapá, a minha bisavó ocupou um pequeno quarto na casa da minha avó aqui em Macapá. O quarto tinha uma cama, uma mesa, umas cadeiras e um calendário que um dos filhos deu a ela. O calendário tinha uma foto de uma casinha de madeira no meio de uma floresta. Minha bisavó sempre apontava para o calendário e dizia que parecia com o lugar que ela morava antes. Havia uma frase embaixo da foto, mas ela não sabia ler.

Distante do verde do campo, do ar puro, das vacas, dos bezerros e dessas coisas em geral, a minha bisavó se tornou um tanto cruel e mesquinha. Ela passava o dia todo humilhando a empregada negra, comparando a pobre mulher com uma vaca de cor preta que havia morrido soltando pus das tetas. Para evitar processos e coisas assim, a minha vó sempre argumentava com os ofendidos, explicando que a idade fazia isso as pessoas.

Depois de completar 89 anos, minha bisavó sofreu um colapso e ficou vários dias em coma. Os filhos achavam que ela não iria passar dessa e começaram a dividir a herança, uma tia minha tirou um cordão do pescoço da moribunda e deu para uma das filhas. Outra levou a mobília do quarto deixando só a cama, outro tomou posse dos lençóis de linho que a minha bisavó havia bordado na juventude,quando ela possuía uma longa trança loira e andava de cavalo pelos campos do Amapá, uma terra virgem naquela época.

Uma porca de porcelana, que continha jóias e coisas do tipo, foi espatifada no chão e o conteúdo foi divido entre os filhos e netos. Mas minha bisavó não morreu. Um dia, ela recobrou a consciência. Ela não reconhecia os filhos que estavam no pé da cama. O médico disse que era Alzheimer, uma doença que destrói a memória das pessoas pouco a pouco.Ela já tinha a doença há muito tempo, mas esse foi o colapso final da doença, aquele que o ser humano esquece que é ser humano.
Minha bisavó tem uns noventa e sete anos hoje mas não anda, não fala, não pensa, não lembra que tem que fazer cocô e precisa usar fraldas. O calendário , citado no ínicio do texto, foi jogado fora há muito tempo. No lugar dele, há um outro com São Sebastião, amarrado em uma árvore, cravado de flexas. Dramático mas sem significado igual a vida da minha bisavó.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Deus é firmamento

Deus salvou a vida de muitos conhecidos e parentes meus. Esses homens e mulheres ou eram doentes sexuais ou alcólatras no fim da linha. Deus salvou todos eles. Depois do salvamento, o nome do rei dos céus virou uma vírgula nos seus depoimentos para os incautos que ainda não conhecem a palavra. Nunca recebi essa palavra. Não sou degenerado o suficiente para servir de propaganda de salvamento divino.

Minha cadela pandora sempre engravidava. De seis em seis meses, o nosso quintal ficava empestado de cheiro de merda e filhotes.Essa era uma das poucas épocas felizes que eu tenho lembrança na minha pobre, ridícula e patética vida. Os filhotes eram lindos. Apesar das opiniões contrárias, eu também achava a minha cadela bastante bonita e os filhotinhos seguiam o mesmo padrão de beleza. Na verdade, a mulher que eu considero mais bonita foi a minha falecida cadela.

Em uma manhã qualquer, um pequeno buraquinho apareceu em um dos filhotes da pandora. A nossa empregada foi nos mostrar, ela disse que se tratava das larvas da mosca varejeira. Minha mãe disse que amoxilina resolveria o caso e curaria o filhote. Que bobagem. Amoxilina é antibiótico, não vermífugo.As larvas  proliferaram. Nós o separamos dos outros filhotinhos sadios. Eu , inocentemente, jogava mais e mais amoxilina dentro do buraco. Oito da noite: o cachorro gritava de um jeito terrível. A pandora não deixava ele chegar perto do resto da ninhada. Ela o ameaçava com os dentes.

Amanheceu. Um pastor mostrava a história de vários homens e mulheres redimidos da doença, do pecado, da miséria, dos vícios, da falência. Todos eles apareciam na tv com uma aparência ótima: cabelos penteados, óculos, vestido, blusa social e tal. Talvez Deus os tenha salvo devido a essa capacidade desses homens e mulheres espalharem a palavra Dele para outros desgraçados.Propaganda é a alma do negócio.

O cachorrinho não conseguia mais andar pela manhã.O buracos já estava grande demais. Nos seguramos ele pela cabeça e arrancamos as larvas com um pinça que tinha aqui em casa. O cheiro era terrível. Na hora, lembrei do programa que vi na TV e rezei para Deus salvar aquela pobre criatura. Uma hora depois ,o cachorro vomitou meio quilo de vermes ,um litro de sangue no colo da minha mãe e depois morreu. Ficamos meia hora olhando o filhote, colocamos ele dentro de um saco preto, lavamos a área que ele ficou com agua sanitária e depois saímos para lanchar na rua.