sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O calendário

Os meus tios acharam que era uma boa idéia trazer a minha bisavó para morar em Macapá. Ela havia morado a vida toda em um pequeno sítio no interior do município do Amapá. Lá ela criou a minha avó e tudo mais. O principal argumento ,a favor da mudança, era o fato de que o lugar não tinha bons hospitais para uma pessoa idosa. Minha bisavó odiou a idéia, mas confiou nos filhos, pois eles haviam feito um curso superior, diferente dela.

No lugar do vasto sítio que ela ocupava no Amapá, a minha bisavó ocupou um pequeno quarto na casa da minha avó aqui em Macapá. O quarto tinha uma cama, uma mesa, umas cadeiras e um calendário que um dos filhos deu a ela. O calendário tinha uma foto de uma casinha de madeira no meio de uma floresta. Minha bisavó sempre apontava para o calendário e dizia que parecia com o lugar que ela morava antes. Havia uma frase embaixo da foto, mas ela não sabia ler.

Distante do verde do campo, do ar puro, das vacas, dos bezerros e dessas coisas em geral, a minha bisavó se tornou um tanto cruel e mesquinha. Ela passava o dia todo humilhando a empregada negra, comparando a pobre mulher com uma vaca de cor preta que havia morrido soltando pus das tetas. Para evitar processos e coisas assim, a minha vó sempre argumentava com os ofendidos, explicando que a idade fazia isso as pessoas.

Depois de completar 89 anos, minha bisavó sofreu um colapso e ficou vários dias em coma. Os filhos achavam que ela não iria passar dessa e começaram a dividir a herança, uma tia minha tirou um cordão do pescoço da moribunda e deu para uma das filhas. Outra levou a mobília do quarto deixando só a cama, outro tomou posse dos lençóis de linho que a minha bisavó havia bordado na juventude,quando ela possuía uma longa trança loira e andava de cavalo pelos campos do Amapá, uma terra virgem naquela época.

Uma porca de porcelana, que continha jóias e coisas do tipo, foi espatifada no chão e o conteúdo foi divido entre os filhos e netos. Mas minha bisavó não morreu. Um dia, ela recobrou a consciência. Ela não reconhecia os filhos que estavam no pé da cama. O médico disse que era Alzheimer, uma doença que destrói a memória das pessoas pouco a pouco.Ela já tinha a doença há muito tempo, mas esse foi o colapso final da doença, aquele que o ser humano esquece que é ser humano.
Minha bisavó tem uns noventa e sete anos hoje mas não anda, não fala, não pensa, não lembra que tem que fazer cocô e precisa usar fraldas. O calendário , citado no ínicio do texto, foi jogado fora há muito tempo. No lugar dele, há um outro com São Sebastião, amarrado em uma árvore, cravado de flexas. Dramático mas sem significado igual a vida da minha bisavó.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Deus é firmamento

Deus salvou a vida de muitos conhecidos e parentes meus. Esses homens e mulheres ou eram doentes sexuais ou alcólatras no fim da linha. Deus salvou todos eles. Depois do salvamento, o nome do rei dos céus virou uma vírgula nos seus depoimentos para os incautos que ainda não conhecem a palavra. Nunca recebi essa palavra. Não sou degenerado o suficiente para servir de propaganda de salvamento divino.

Minha cadela pandora sempre engravidava. De seis em seis meses, o nosso quintal ficava empestado de cheiro de merda e filhotes.Essa era uma das poucas épocas felizes que eu tenho lembrança na minha pobre, ridícula e patética vida. Os filhotes eram lindos. Apesar das opiniões contrárias, eu também achava a minha cadela bastante bonita e os filhotinhos seguiam o mesmo padrão de beleza. Na verdade, a mulher que eu considero mais bonita foi a minha falecida cadela.

Em uma manhã qualquer, um pequeno buraquinho apareceu em um dos filhotes da pandora. A nossa empregada foi nos mostrar, ela disse que se tratava das larvas da mosca varejeira. Minha mãe disse que amoxilina resolveria o caso e curaria o filhote. Que bobagem. Amoxilina é antibiótico, não vermífugo.As larvas  proliferaram. Nós o separamos dos outros filhotinhos sadios. Eu , inocentemente, jogava mais e mais amoxilina dentro do buraco. Oito da noite: o cachorro gritava de um jeito terrível. A pandora não deixava ele chegar perto do resto da ninhada. Ela o ameaçava com os dentes.

Amanheceu. Um pastor mostrava a história de vários homens e mulheres redimidos da doença, do pecado, da miséria, dos vícios, da falência. Todos eles apareciam na tv com uma aparência ótima: cabelos penteados, óculos, vestido, blusa social e tal. Talvez Deus os tenha salvo devido a essa capacidade desses homens e mulheres espalharem a palavra Dele para outros desgraçados.Propaganda é a alma do negócio.

O cachorrinho não conseguia mais andar pela manhã.O buracos já estava grande demais. Nos seguramos ele pela cabeça e arrancamos as larvas com um pinça que tinha aqui em casa. O cheiro era terrível. Na hora, lembrei do programa que vi na TV e rezei para Deus salvar aquela pobre criatura. Uma hora depois ,o cachorro vomitou meio quilo de vermes ,um litro de sangue no colo da minha mãe e depois morreu. Ficamos meia hora olhando o filhote, colocamos ele dentro de um saco preto, lavamos a área que ele ficou com agua sanitária e depois saímos para lanchar na rua.








quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Magave 1 de 8: A base aérea do Amapá

Dirígivel pousando na base aérea do Amapá.


Quando eu, finalmente, consegui coragem para ir na casa dos Magave, o nosso trabalho já estava fadado ao fracasso.Tínhamos um plano ambicioso para a nossa conclusão de curso: íamos nos aproveitar da sede de sangue e formatos estéticos para contar de uma forma totalmente diferente, a a história da família Magave.Foram cinco longos meses morrendo na praia, se fodendo e , diferente das outras histórias edificante que eu ja tinha lido na minha vida, e as coisas estavam bem longe de terminar.

Bem, antes de dar inicio ao making-of mais triste da história da humanidade, eu irei explicar de onde tirei a minha triste idéia. Tudo começou em mais um dia improdutivo na faculdade de jornalismo, um curso que eu escolhi por pura falta de opção e para diminuir a minha sempre tão terrível melancolia.Comecei a fazer esse curso em 2006, um ano depois do horror terrível que consumiu a minha alma em outra cidade. Uma época em que qualquer horror era incomparável e a dor do meu ser atingia níveis críticos.

No anterior a 2006, eu fui passar um curto período de 3 meses na casa da minha vó materna. Eu e a minha tia moribunda. Esse periodo compreendeu o dia dos finados ( que a minha tia dizia já comemorar como se já estivesse morta), o natal ( que ela fazia questão de dizer a todos que seria o último), o ano novo ( que ela dizia ser o ano final da vida dela, me fazendo ter uma séria crise de ansiedade e asma), o aniversário da minha tia( que ela se recusou a tirar fotos por causa da careca), o meu fracasso no vestibular ( que ela já dizia que já sabia que ia acontecer, pois ela me considerava um retardado), a perda da virgindade do meu primo ( que a minha tia espalhou para a família toda no almoço) e a própria morte dela( que eu não vi).

Nesse período, a casa da minha vó se enchia de parentes que gostavam de prestar solidariedade a semi-morta, crentes oportunistas, crianças e eu. Havia pessoas estranhas visitando a casa, pessoas bem estranhas. Duas, eu gostaria de destacar. A primeira era os vendedores de NONI.Um suco de fruto com poderes medicinais que eu sei bastante pouco, mas pesquisei na internet para fornecer aos leitores desse blog, uma noção do que é. Então vamos lá:

"O suco Tahitian Noni não é um medicamento.
Seus inúmeros benefícios para a saúde advêm de seu altíssimo valor nutricional. Ele é um alimento natural. Além dos aspectos nutritivos básicos (balanço calórico, protéico etc.).
Também pode ser considerado um complemento alimentar bastante completo, possuindo uma grande variedade de nutrientes e micro-nutrientes, dentre eles a proxeronina, cujos benefícios para a saúde são facilmente notados pela imensa maioria das pessoas que utilizam o suco por tempo suficiente para suprirem suas deficiências nutricionais. A verdade é que hoje em dia, quase todo mundo tem algum tipo de carência e desequilíbrio no que se refere à sua nutrição. É por esse motivo que as pessoas doentes (seja qual for a enfermidade) costumam beneficiar-se do suco Tahitian Noni. Muitos de seus sintomas se atenuam ao fazerem uso do suco, o que acaba por confundi-las, fazendo com que pensem que o suco as curou. Entretanto, a verdade é que essa melhora é o resultado da ação reconstituinte do Noni, que ao nutrir adequadamente as células, faz com que o organismo recupere seu funcionamento harmonioso, que se traduz em saúde e sensação de bem estar. Isso se deve não apenas à xeronina, mas à ação sinérgica dela e dos demais constituintes do suco Tahitian Noni."

Os vendedores de None apareciam sempre em todo sexto dia do mês. Uma mulher com uma aparência desgrenhada descia de um Pallio com uma grande mala. Eu e os meus primos ajudávamos a carregar a mala. Ela não agradecia. Havia um ar idiota e superior no rosto dela que era acentuado pelo nariz empinado . O marido vinha logo atrás, sempre atrás.Destratado pelos 6 degraus que compunham a escada que dava o acesso a casa da minha vó, ele afirmava que a esposa fazia isso apenas para se mostrar para os estranhos, pois na cama, ela ficava bem quietinha a espera do pau dele. "Coisas de mulher rá rá rá" ele dizia.

A mala era arrastada até o quarto que ficava a minha tia. A mulher que vendia o NONI era xingada pela minha tia  por fazer tanto barulho, por usar um perfume tão forte, por causa do leve cheiro suor que ela emanava por sair do carro e subir as escadas de concreto. A vendedora de NONI ria e dizia que a carequinha era braba demais, mas o NONI iria resolver isso.Então ela tirava uma garrafa com um líquido vermelho com uma etiqueta de um havaiano segurando um cacho de algo que parecia uvas vermelhas. Quando a garrafa era destampada, o conteúdo emanava um ar doce pelo quarto. Minha tia sentia ânsia de vômito e algum primi meu corria com uma pequena bacia para acudí-la.

O fato é que o NONI, de certa forma, exercia uma pequena melhora na minha tia. Os lábios ganhavam cor novamente e , raramente, ela abria um sorriso.Nós tentávamos rir com ela, mas eramos repreendidos pela sua vilania sem fim. Infelizmente, a quimioterapia tornava o NONI intomável. O cheiro doce esbarrava no enjôo sem fim do procedimento. Todas as ávores do Havaí que cresciam na mente do usuário pareciam secar até a morte. Os troncos pareciam ficar opacos, o céu azul parecia perder a cor e os amantes, na beira da praia, se contorciam com uma dor sem fim. Os olhos saltavam das órbitas e o horror dominava aquela terra vírgem.

Os segundos visitantes eram de uma pequena igreja, formada recentemente no Pará.Mais uma. Igreja do diagrama divino. Fundada em 1956, pelo missionário João Batista figueredo, a igreja conta com bastante fiéis no Brasil inteiro. Tudo começou quando uma das filhas do fundador caiu doente em uma bela tarde. A família era bastante católica e rezou bastante para a cura da criança, o que não deu muito certo, pois a criança morreu logo depois, engasgada com o próprio vômito, depois de ter tossido bastante.

Durante o enterro da criança, o pai sentiu fortes dores na região do abdômem por muitos e muitos dias. Ele foi levado para o hospital e depois de alguns exames, foi constatado que ele possuía a mesma doença da filha( e mais uma úlcera). Ele passava o dia todo consumido pela doença e pelos remédios. Nas alucinações mais loucas, a filha vinha direto do mundo dos mortos e lhe fazia um delicioso e suculento sexo oral. A filha dizia para ele algumas palavras sábias, mas ele não entendia por causa do pênis que entupia a boca da criança.

Um dia, a dor alcançou níveis horrendos e ele começou a gritar. A esposa, incomodada, saiu de casa e começou a gritar por ajuda na rua até parar e comer alguma coisa na lanchonete da esquina. Ele ficou lá , no quarto, sozinho como todo homem,fechou os olhos com tantas força que um desenho apareceu, quando ele abriu os olhos. Esse desenho:
O círculo da dor e as suas mútiplas camadas
Bem, não havia esses numeros e tal, mas o círculo de camadas apareceu dessa forma em sua visão e permaneceu o suficiente para ele transcrever em um pequeno papel. Uma coisa notável no círculo era que, dependendo da situação, certas camadas pareciam se destacar mais que as outras. Abatido pelo luto e pela doença, a região número 3 pulsava com mais força na sua vista.Bem, vou parar de contar a história da igreja, pois eu ainda tenho que falar do meu próprio drama pessoal e, pelo menos, iniciar a triste história que envolve eu e a também triste história da família Magave.

Por isso, vou explicar a idéia central da igreja. As camadas de dor mostram o quanto o homem está distante de Deus e cego pela própria dor. A missão da igreja, então, é fazer o fiel se livrar da redoma interminável desse terrível circulo e iniciar uma nova vida, onde unicórnios comem mato no quintal e tudo mais.Coisas que toda religião promete.

A primeira visita aconteceu em um dezembro realmente chuvoso. Seis pessoas de terno, desceram de um um kombi. Eles subiram os degraus que davam acesso a casa da minha vó. Uma mulher baixinha e gorda reclamou da coluna e foi repreendida por um irmão de igreja. "Quem acredita, não reclama". Minha prima abriu a porta para eles. No entanto, o portão que ficava antes da porta, estava cheio de cadeados. Começou uma chuva. Os evangélicos foram se ensopando enquanto a minha prima procurava pelos cadeados. "Quem acredita não se molha" disse um deles.

Quando eles finalmente conseguiram entrar na casa. A minha vó deu toalhas para se enxugar e ofereceu um café para eles esquentarem o corpo. A irmã gordinha aceitou. O chefe da comitiva perguntou para ela em que camada ela estava no círculo. Ela fechou os olhos e visualizou a pequena casa de madeira que ela morava na periferia daquele lugar, viu os filhos, o marido desempregado, a cadela Léssi e o círculo foi se formando. Ela começou a chorar e se contorcer no chão. O horror no rosto dela era visível. Os outros irmãos começaram a gritar de dor em solidariedade a irmã. A chuva lá fora piorava.

O chefe da comitiva desenrolou um papel com um circulo com umas dezessete camadas. Ele perguntou da gordinha, que ainda se contorcia, em qual camada ela estava. Ela apontou a camada número 12, azul claro. Sim. O azul claro das manhãs sem sol, onde os bois pastam, as borboletas voam sobre as floreso, o orvalho seca nas folhas. Todo milagre do mundo acontece nas manhãs de azul claro. Davi, o pastor anda pelos pastos, comtemplando a obra do Criador. Uma ovelha se fere em um espinho. O espinho se infecciona e mata a ovelha algum tempo depois. O cadáver apodrece entre as ovelhas que acabam morrendo também. Agora, todas as ovelhas apodrecem ou agonizam no pasto. Davi viu a morte, Davi perdeu a inocência. O gigante Golias tomba sobre  a terra. Davi agora é rei. Davi manda Urias para morrer na guerra. Bate-Seba deita, nua, no divã. O pecado destrói a estrela de seis pontas. O servo toca na urna sagrada e morre. Natã aponta o dedo acusador para o sucessor de Davi.

A pequena crente para de contorcer. O chefe da comitiva explica a ela que quem acredita não tem convulsões. Ela acena a cabeça concordando. Eles se dirigem para a cama da minha tia, que, agora, não passa de um pequeno reflexo do que já foi no passado. A cabeça sem cabelos, o corpo magro demais, a voz asfixiada, o braço queimado na radioterapia. O papel com o círculo é grudado na parede e aquelas pessoas explicam a minha tia como funciona. Minha tia não ouve mais. Se Deus é responsável pelas coisas, ele foi realmente cruel com ela. Ela os enxotou do quarto e ficou chorando durante meia hora. As pessoas que ficavam com ela estavam meio entediados das mesmas cenas sempre, por isso só restou a eles darem um longo e triste suspiro.

O chefe da comitiva explicou a minha vó que o trabalho demoraria para surtir efeito.Em maio, eles voltariam lá. Em maio, a minha tia ja estava morta. Seriamente traumatizado, eu voltei para Macapá( estou odiando essas novas configurações do blogger)e ingressei na faculdade de jornalismo.Foram três anos e meio de completa inutilidade. Eu sempre me espanto com a minha capacidade de ser um completo idiota em tudo o que eu faço. No último ano, eu ingressei no coletivo palafita e tive a minha incrível idéia para o tcc. Um quadrinho contando o hediondo destino dos Magave, uma família do município do Amapá. Para isso, eu contei com a minha parceira Danielle( que sofreu bem mais que eu no processo do trabalho) e muito azar.

Nossos trabalhos começaram no segundo semestre de 2009. A pobre Danielle se deslocava do extremamente longíquo bairro Universidade para a minha casa no Cabralzinho. Em todos os nossos encontros, eu estava completamente destruído pelo meu horror pessoal( que estava no auge naquela época). Dessa forma, nossas reuniões não eram nada lucrativas. A parte que cabia a Danielle( a monografia) andava perfeitamente bem. A minha ( o roteiro) nunca passava da página 4. Na verdade, devido a minha volubilidade com as coisas, eu não estava mais nem aí para o tcc e os Magave e , pensando bem, eu nunca tive, de fato, um envolvimento com todo o drama da história.

O trabalho todo era feito pela pobre Danielle que, jamais, reclamava.E assim passou Agosto, Setembro, Outubro, Novembro.Havia a necessidade da família ser entrevistada. Nós conseguimos localizar um Magave que morava na Avenida Fab, em Macapá. Marcamos a nossa primeira entrevista com ele. Eu faltei e fiquei em casa, choramingando pelo meu drama pessoal e depois saí para beber. A primeira entrevista ocorreu sem problemas, a minha parceira de TCC marcou um retorno e me informou que eu teria que ir. Isso me deixou irritado, pois eu tinha medo das consequências emocionais para mim ao falar com alguém que tinha sofrido um trauma tão grande.

Dessa forma, eu arquitetei para fugir mais uma vez desse terrível encontro. No entanto, eu não consegui. Então, em algum dia de novembro, eu e a minha parceira de tcc esperávamos pelo nosso entrevistado, que ainda não havia chegado em casa. A residência dessa parte da família Magave fica na Avenida Fab, perto de um depósito da companhia áerea GOL. A casa tem uma frente simples, há um pequeno portão de ferro que fica antes da entrada da porta principal. A casa parece ter outras seções na parte de trás, onde devem morar mais membros da família. Coisa bem normal em Macapá. Na frente da casa, há um daqueles carros com caminhonete e outro carros. Existe, também, um pequeno desnível da casa dos Magave para a loja da companhia GOl. As pessoas usam esse desnível para se sentar.

O nosso entrevistado era Francisco Magave, um dos filhos da senhora Nadir Magave que perdeu a vida naquele triste episódio. Na época, Francisco cuidou dos tramits que envolviam o funeral dos seus irmãos e de sua mãe, da intricada e quase sempre infrutífera investigação dos casos e da imprensa amapaense ( que não perdia a oportunidade de chama-lo de Raimundo). Hoje, ele parece seriamente afetado pela experiência. A nossa entrevistada sempre era interrompidas pelos constantes brancos que o entrevistado tinha. Para ajudar a memória, ele conta com um pequeno clipping de matérias da época, algumas fotos dos familiares mortos, laudos da perícia, carta dos acusados e só.

Algumas vezes, ele fitava o vazio e ficava nisso por dois, três minutos. Nós ficávamos bastante constrangidos e quando tentávamos retornar o assunto, ele já não conseguia mais voltar ao ponto de que tinha parado. O sol castigava o asfalto e o nosso estômago começava a sofrer demais. As diversas explicações fragmentadas do entrevistado criavam mais e mais fissuras na história original. Eu fechava os olhos e enxergava o círculo de dor com umas 90 camadas. Todas pulsando fortemente. A parte boa da entrevista é que muitos mitos a respeito da família foram caindo. O primeiro foi o de que a família toda morou a vida toda no sítio em que ocorreu o incidente.

O pequeno sítio, na verdade, era apenas uma propriedade da família. Os magave residiam na base aérea do Amapá. Na época, a base devia estar no seu auge. O local foi construído por causa da localização específica. Os Magave devem ter visto os muitos dirígiveis pousando na pista imensa. Esses traziam carros, tanques, armas, soldados e coisas do tipo. Meu avô presenciou um dirigivel imenso passando sobre a pequena cidade que ele morava, no interior de Vigia, no Pará. Eram imensos, silenciosos e faziam as crianças chorarem. As mães diziam aos filhos que as cordas que saíam daquelas coisas iria levar todas as crianças malcriadas para o inferno. As crianças choravam desesperadas.

Depois da guerra, os americanos foram embora e levaram toda a infra- estrutura da base. O lugar foi se degradando aos poucos. Com o acidente do dirígivel Hindenberg, a fabricação dos dirigíveis foi paralizada para sempre. O céu agora era dominado pelos barulhentos aviões. Não o céu do Amapá. Com a base desativada, os aviões pararam de pousar ali, as instalações da base foram tomadas pelo mato, as placas foram destruídas pela ferrugem. Hoje, só resta a pista, esburacada.






quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A piscina

Era uma vez, uma imensa piscina. A água era azul e uma espécie de gerador criava pequenas ondas artificiais para sacudir os banhistas e tornar a experiência do banho agradável para todos. Dez horas da manhã e a piscina estava cheia de banhistas de todas as idéias. O sol refletia nas bóias coloridas, nos músculos dos belos rapazes, na pele oleosa das belas mulheres, nos dentes das belas crianças.

O lugar era cercado por árvores coníferas, plantadas ali para dar um clima meio americano para o local. A vegetação nem sempre foi essa. Antigamente, as árvores dali eram árvores grandes, tortas, tronco grosso e os galhos eram cheios de um limo escuro fedorento. Com a construção da sede dos vendedores de cosméticos( onde ficava a piscina), esta vegetação deu lugar a algo mais esteticamente plausível.

"Os cones" explica a diretora do local " trazem uma aparência mais light para o local e transmitem as pessoas, a sensação de que eles estão na Carolina do Norte, onde fica a nossa matriz. Nós possuímos 250 sedes dessas, espalhadas pelo mundo todo. Há cones em todas. Padrão, sabe? Eu me sinto emocionada por fazer parte de algo tão grande. Desculpa, isso não são lágrimas. Caiu um cisco no meu olho"

Os banheiros da sede foram premiadas por uma revista local. São limpos, adequados, cheirosos e possuem muitos espelhos. De 30 em 30 minutos, um gás cheiroso é expelido por um desodorizador automático e limpa o ar com um cheiro de margaridas do campo. Na verdade, as flores não são tão cheirosas quanto os seus clones químicos que levam os seus nomes. Mas isso importa a poucos, na verdade, não importa a ninguém.

Uma unidade de primeiros socorros está sempre de olho na piscina. De vez em quando, alguma criança sem limites, começa a tossir de forma preocupante na água.Um salva-vidas pula na água e levanta o candidato a afogamento pela nuca para salva-lo da morte. As mães agradecem e espancam as crianças para elas não repetirem esse péssimo comportamento no futuro.

Em uma das bordas da piscina, está uma mulher, deitada em uma cadeira branca. Um guarda-sol a protege da luz. Essa exposição não é interessante para ela pois o corpo dela está cheio de falhas e mostra-las não a deixa feliz. Houve um tempo em que ela era tão linda que podia pedir a vida de qualquer homem descamisada que estivesse naquele amontoado de cloro, urina e gente idiota. Mas essa época não existe mais. Hoje, só resta a ela, o peso do tempo e as suas muitas sequelas.

Ela sente o banco desconfortável demais e tem vontade de chamar um dos garços, mas a voz dela anda meio falha esses dias. Não é faringite, nem alguma daquelas doenças que afetam a garganta. A semana que passou foi bastante estressante para ela e para a sua garganta. Segunda, ela abriu a janela e levou um ar frio bem no meio do peito. Começou a espirrar e ficou de cama até quinta-feira. Foi terrível sair de casa, ainda com os efeitos da gripe, e receber o sol bem no meio do rosto. O suor caía, gelado, do seu rosto.

Ela resolvera visitar um antigo amigo da juventude. Ele morava, recluso, em uma casa perto da dela. Quando jovem, ele era o desejo de homens e mulheres. Ele e ela eram os reis da festa. Um dia, ele levou um amante para a sua casa, tirou a camisa do parceiro e foi ao banheiro para se lavar. Quando voltou, o parceiro o esperava com um pedaço de perna-manca. Ele recuou assustado, mas não o suficiente para não ser atingido pela madeira e pelo prego que ficava na ponta. O rosto dele foi rasgado de ponta a ponta.

Ele caiu de joelhos no chão. O algoz o chutou nas costas e ele caiu com o rosto no chão. Desesperado, ele pedia por um espelho. O agressor ria, extasiado com a situação. Um pé atingiu o rosto do rapaz. O sangue se espalhou no carpete, que ele escolhera com tanto cuidado, até virar uma mancha vermelho-escura horrenda. O algoz rasgou as costas dele com o prego e rasgou o corpo todo. No fim de tudo, ele estava tão dilacerado, que procurar 20 centímetros de pele inteira, intacta era um milagre.

Ele ficou jogado no chão por dias e dias. O sangue secando no carpete, o fedor invadindo o ar, a poeira se empilhando nos móveis. A mãe surgiu nas suas lembranças: Séria, louca olhando para o rio, esperando pelo pai dele. Os outros pescadores explicavam a ela que o pobre homem tinha morrido afogado. Ela não ouvia. Um dia, ele iria voltar daquelas águas terríveis para ela. Ele voltou, um dia. O corpo inchado, o rosto comido pelos peixes. Ele voltou, ela repetia aos filhos. A filha caçula se matou uns cinco anos depois daquilo.

O outro filho mais velho viajou para a cidade grande. Lá ele dormia com homens novos, homens velhos em um trajetória vertiginosa que foi parar naquele tapete ensaguentado. A pele dilacerada. Cada movimento era um martírio. O rosto dele, refletido em um armário o enchia de terror. Onde estava o rei de todos os homens e mulheres? Onde estava a glória daqueles dias dourados? O horror subia, acompanhado da bile, para a língua dele. A voz amarga do horror repetia no seu ouvido, o nome de todos os inúmeros amantes que ele teve em vida. Em ordem alfabética.

Alberto, um homem careca, de voz baixa. Gostava de ser amarrada no espelho da cama e apanhar como uma vadia. Depois, ele chorava como uma criança e se abraçava com os travesseiros vermelhos.

Bruno, voz grossa, pose de machão. Colocava o nosso homem retalhado de quatro e metia o pau com tanta força que o fazia gritar desesperado. Os gritos chicoteavam o lustre de vidro que ficava sobre a cama.

Clóvis, bichinha pequena, de voz afinada. Alguns anos depois, ele viraria Cláudia em alguma cidade européia. Depois, ele voltaria a ser homem e . sem seguida, mulher de novo.

A lista era imensa. Não cabe reproduzí-la aqui. Ele andou pelo apartamento. A dor era tanta que ele nem sentia mais. Olhou o espelho do banheiro. No presente, quando a mulher da piscina o visitou, ele estava olhando para o mesmo espelho. As cicatrizes formando um mapa hediondo pelo corpo dele. Ele cumprimenta a amiga e a convida para sentar. Os sinos da catedral ao lado reverberam nos vidros da casa. Ela tampa os ouvidos.

Ele explica a amiga que pretende morrer logo. Existe um armário; no armário há uma caixa de madeira; na caixa de madeira há uma arma; dentro da arma há 6 balas; dentro das balas há pólvora.Dentro de duas ou três semanas, a faxineira encontrará o corpo dele, semi- decomposto em uma banheira. A água vai estar vermelha. A serviçal irá gritar desesperada por socorro. As cicatrizes dele estarão de uma cor estranha na água.

O enterro dele vai ser o menor que o cemitério já teve naquele ano. Uma mulher com olhar perdido vai jogar uma flor no caixão. A flor vai estar seca. A mulher é a mãe dele. Durante o velório, o corpo dele estava cinzento como o do seu falecido marido. O filho substitui o pai. Uma por uma, as pessoas foram embora do velório do homem. Muitas já tinham visto aquele homem nu, mas jamais trocaram meia palavra com ele. O cheio de cloro era forte no enterro.

O cheiro de cloro é forte demais na piscina. As crianças saem enrugadas da água. Uma chuva cai e apaga o fogo do churrasco. Uma lona é suspensa para não deixar que o fogo se apague. Da floresta, sai o barulho dos aves. Um pássaro de penagem azul voa pelo céu e bate em uma árvore. Os espinhos o perfuram. O coração dele é perfurado por muitos espinhos. O cadaver cai no chão e os dias passam.

O corpo azul dele vai se decompondo na terra marrom. As órbitas dos olhos secam, a barriga se enche de vermes amareços, o esqueleto fica exposto. Os ossos se misturam com a terra. O corpo afunda. Novas camadas de terra crescem sobre o pássaro. Lá embaixo, o corpo dele é mais um entre outros que irão servir de adubos para os pinheiros.

O dia começa a escurecer. As pessoas começam a deixar a sede. Os carros levantam poeira. Os portões são fechados. O gerador de ondas é desligado. A água se acalma. Alguns navios de papel continuam na superfície da água, até desmanchar e se tornarem apenas papel molhado.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Um lindo novo dia

Ela acorda e põe a mão na barriga para sentir o estômago. Ele não doeu essa manhã. O sol entra pelas frestas da janela e ilumina a poeira do quarto. Não é uma luz laranja como as da manhãs de sol. É uma luz acinzentada, opaca, sem vida, mas forte o suficiente para trazer um pouco da manhã para o quarto.

Uma avenida aparece na TV, um homem em chamas corre na direção do expectador. A família toma um café delicioso. O pai agradece a mãe pela refeição, e ela lhe dirige um sorriso torto e deformado. Um cachorro late lá fora.

Um ninho de abelhas é incomodado pelos vizinhos. Uma vara gigante de madeira perturba a colônia. As pessoas lá embaixo, dão gritinhos de expectativa. Quando a colméia se espatifa no chão, os guerreiros voam para salvar a sua rainha, mas são detidos por um poderoso inseticida. A rainha agoniza no chão, o ventre inchado de vida. Uma criança pisa nela e espalha uma sujeira amarela na rua.

Uma bicicleta passa por poças de lama. Noite passada, houve uma grande tempestade por ali. A energia elétrica apagou e , por vários minutos, as casas foram iluminadas pelo horror dos raios. As crianças acordavam com a luz e o barulho dos trovões e choravam pelos seus pais que, impotentes, explicavam que tudo ia passar. Bem, eles não tinham certeza.

Na mesma noite, uma kombi lotada de evangélicos rodava a cidade para pregar pela cidade, a palavra daquele que morreu na cruz e o seu pai. Muitos dos que estavam na kombi, estavam experimentando a sua primeira vez naquela magnifíca de fé. O medo subia pelos corpos deles. Alguns tremiam. Um irmão mais experiente explicou que era normal.

A palavra do senhor era distribuida na forma de um pequeno papel de formato retangular. Nele havia a história do primo de Jesus, João batista. O papel era uma licensa poética contando os pensamentos finais desse grande profeta, no cativeiro, a mercê de homens e mulheres mundanos, a sorte dele estava chegando ao fim e a fé era a sua unica arma.

Dias antes, ele havia encontrado o filho de Deus, nas margens do rio Jordão e o batizou. Uma pomba branca desceu do céu para confirmar a validade do ato. Quando a silhueta daquele homem ia se perdendo no horizonte, João Batista enxergou a sua sina e a dele. Ambos iam ser mortos. O maré de areia do tempo iria apagar a verdadeira história.

Misericódia, Pai. Ele se ajoelhou , horrorizado, nas margens do rio e gritou por misericórdia por ele, pelo seu primo e tudo mais. Algum tempo depois, ele foi preso por um rei adúltero e foi jogado em uma cela escura. Uma dança exótica decidiu a sua sina: sua cabeça em uma bandeja para a princesa Salomé.

Ele olhou pela janela de sua cela. Estava escuro demais. O mundo inteiro dormia. Pela manhã, os pássaros iriam cantar a música de Deus, o orvalho encheria o ar, as vozes tomariam o lugar do vento e ele não estaria mais lá. Era o fim, mas era um fim digno. As pessoas lembrariam da palavra forte dele. O pai ensinaria ao filho; o filho ensinaria ao filho do filho; o filho do filho ensinaria ao filho do filho do filho. Era um consolo para quem viveu a vida inteira só e cresceu no deserto.

A triste, mas edificante história do batista de jesus era distribuído pelos evangélicos para os doentes, leprosos, filhos da puta, obesos, putas, cavajestes, desgraçados, artistas indepedentes e toda a escória do mundo.Houve casos que o receptor da palavra não tinha pernas, nem braços. Dessa forma, os folhetos eram enfiados na boca ou nos umbigos desses coitados.

Os jovens evangélicos, que antes eram temerosos, agora se enchiam de orgulho ao ajudar aqueles pobres homens. Ás vezes, irmã Vanda parava a kombi para eles rezarem. Os irmãos apertavam as mãos com força por causa do significado daquele momento. Irmão Wagner então tocava uma linda melodia contando a forma que Davi reencontrou o Senhor dos seus tempos de pastor em que acordar e sentir o cheiro das coisas vivas era a maior das recompensas.

Irmã Marieta era uma das que mais se emocionava. Ela tinha a metade do rosto deformado por um marido violento que, bebado, incendiou a casa com os seus dois filhos menores. Ela encontrou em Deus, a reposta para o seu luto, para as suas indagações e , em troca, virou a mais fiel soldada dele. Disposta a desembainhar qualquer arma para lutar por ele. Na hora do canto de Davi, ela lagrimava, esperneava, gritava, falava em línguas desconhecidas.

Naquela noite, porém, as coisas foram diferentes. A kombi não completou metade do seu percuso, quando uma tempestade terrível começou. A água parecia a ponto de romper os vidros da kombi. Eles rezaram, rezaram, rezaram, mas o som do trovão era maior, mais terrível. A luz dos raios iluminava o interior do automovel de forma assustadora. Rezar era demais, o ideal nessas horas era morrer de medo.

Uma bandeira tremeluzia de forma agourenta em um mastro. Vinte seis ou vinte quatro estrelas, eu realmente não sei, mas o pano desgrudou e voou , derrotado, pelo céu até cair em uma vala, onde, pela manhã, seria a honorária companheira de merda de cães e água do esgoto. As pessoas dentro da van se calaram. Irmã Marieta estava muda de horror e sentia todo o vazio da sua existência. Feia, deformada, acariciando mendigos para acalmar o animal que vivia dentro dela, animal esse que chorava pelo horror do sexo, da fornicação secular, do pecado.

Ela se encolheu um dos bancos, diminuída.

A chuva parou pela manhã. A kombi voltou a andar. Os buracos das ruas estavam cheios de águas, os carros passavam por cima e molhavam pedestres desatentos. O sol brilhava pálido no céu, logo ele ficaria forte o suficiente para secar a água da vala, enxugar as folhas das plantas e iluminar o dia dos filhos de Deus. Isso encheria o coração deles com muitas lições de amor, paz, companheirismo e superação.

Até outra terrível tempestade.




domingo, 22 de agosto de 2010

A vida sem poesia 1 de 1

Sempre idealizei a garça como um animal nobre.Talvez pelo pescoço longo, pelo branco celestial da sua penagem, pelas pernas longas que parecem não tocar o chão, pelo bico grande ,amarelo ,simetricamente perfeito e um monte de outras coisas. Um dia, me disseram que as garças só existem, em grande quantidade, onde há muita sujeira.

O local onde eu moro é cheio de garças. Minha casa fica em frente a uma lagoa imensa. A lagoa dos índios. Por que esse nome? Eu também não sei.Talvez alguns índios devem ter morado ao aqui por muito tempo. Com a chegada do colonizadores, as ocas devem ter sido queimadas, as crianças foram assassinadas, as mulheres foram violadas, o homens devem ter caído para proteger as suas famílias.

Ou não.

A lagoa nunca pareceu um lugar imundo. Se o leitor visualizar o local por cima, dificilmente, vai ver rastros de sujeira ou qualquer coisa que profane um verde tão perfeito. Mesmo assim, as garças continuam lá. Aos montes. Eu acho que para cada urubu, existem umas quatro garças. Quando um urubu morre, os seus companheiros não devoram a sua carniça. Essa é uma verdade sobre urubus. As garças devem faze-lo, afinal criaturas lindas não precisam ser nobres.

Um dia, eu acordei completamente apaixonado. Pessoas nesse estado costumam a pensar na vida com mais poesia. A ocasião pede. Nunca tive um olhar poético sobre nada .Não consegui na época e desisti.Em um dos milhares dias perdidos da minha adolescência, eu e muitos amigos da escola viajamos para um daqueles passeios de escola. 7: 45 da manhã e todos deviam estar no pátio da escola para escolher o seus lugares no ônibus. Cheguei um pouco tarde demais e tive que ficar na janela e um casal ocuparia as poltronas do meio e do corredor.

A moça estava inconsolável.Na véspera do passeio, ela tinha visto um bando inteiro de pássaros morrerem eletricutados na hora que ela varria o patio de casa. Ela, então, foi surpreendida, do nada, por uma chuva de pássaros mortos. Ela nunca tinha visto e nem presenciado nada tão terrivel. Enquanto as árvores iam passando por nós em uma velocidade entediante, o rapaz tentava consolar a mocinha, explicando o ciclo da vida, no entanto, pássaros mortos por eletricidade não estão em nenhum livro de biologia.

O rapaz dizia a moça para ela esquecer do triste destino das garças, que a morte não era o pior dos destinos. Ele dizia isso pegando nos cabelos dela, encostando o corpo dele no dela para esquentá-la e lembrar que ele tinha um pássaro mais importante, ainda vivo, pulsante, louco para enxugar aquelas lágrimas e melar o rosto dela com outra coisa. Ela dizia que não conseguia tirar do nariz, o cheiro dos pássaros mortos. Sim, era terrível. Alguns ainda se contorciam no chão antes de morrer, as penas caindo do céu como neve, quando ela tentava fugir, eles batiam no ombro dela.

Ela tomou vários banhos naquele dia. Papai e mamãe a agradaram muito . Papai a pôs no colo e começou a cantar alguma musiquinha idiota que ele sempre ouvia no carro e mamãe fez uma linda torta de limão. Essa torta sempre a conquistou. Quando ela era pequenina, do tamanho de um botão, mimada, amada, linda, desdentada, catarrenta, retardada, egoísta, imunda, estúpida e o mundo parecia ser um lugar apenas grande demais; a torta da mamãe despertava o melhor dentro dela, curava todas as dores e enchia o coração dela de algo que ela jamais soube dizer o nome.

Em um futuro distante, bem distante do que imaginamos, quando as bestas descerem do céu vermelho, quando as carruagens do inferno passearem pela rua, quando toda água do mundo se tornar veneno, quando o corpo dela for chicoteado, quandos os minutos se tornaram horas, quando o sangue dela pingar no chão para ser bebido pelos servos de satanás, quando ela urrar de dor pedindo para morrer; a única coisa que ela vai lembrar é da torta da mamãe.

E dos pássaros mortos.

Vamos voltar ao presente. O namorado na poltrona do corredor, ela na do meio, eu na janela. As pessoas apontavam para uma fábrica desativada. A paisagem agora era de cones. Eu lembro muito das pessoas que estavam no ônibus, mas eu os vi pouco depois que concluí o ensino médio. A vida os tornou professores, estudantes, pais, mães, afogados, suicídas, desgraçados. As pessoas são más e, realmente, não prestam. Porém, a vida é pior. O namorado mostrava uma revista para a namorada. Algumas modelos a encaravam da revista. Magras demais, lindas demais. A beleza delas fez a moça chorar copiosamente e o rapaz deu longo suspiro.

Ele viera preparado para a ocasião. Nossa, como ele havia esperado aquele dia. Papai dissera a ele que havia comido muitas meninas na água de inúmeros terrenos. Para provar ao filho, ele passou a mão no pênis e disse para o filho cheirar o odor vaginal da vitória. Ele cheirou, mas não sentiu nada. O pai, então, disse que o melhor seria chupar para sentir no paladar: o melhor dos sentidos. Ele chupou com muita força o pau do pai, do herói. O gozo quente do pai na sua garganta o tornou um rapaz mais confiante. Cinco gozos desses e ele se tornaria um herói da guerra. Elmo na cabeça e o estandarte com o pau do pai erguido entre as lanças. Ele enfrentaria uma legião de bárbaros, gordos, sulistas, orientais, desgraçados, leprosos, pedófilos, filhos da puta e morreria em glória.

Mas não nessa versão do mundo.

Aqui, a namorada dele está apavorada por causa dos pássaros mortos. Papai o preparou para ser um macho, mas não para ser um coveiro. O destino do nosso ônibus havia sido atingido. As pessoas desciam ansiosas do ônibus e gritavam para o céu. Os pássaros das árvores voavam assustados por causa do alvoroço. A moça se agachou no chão, desesperada. As penas dos pássaros caíam sobre as pessoas. Eu espanei bastante dos meus ombros.

O terreno era cheio de chalés. lá, os rapazes e as moças trocavam de roupa. Menos eu. Passei a estadia do terreno completamente entediado, esperando morrer. O rapaz e a moça entraram em um chalé, sozinhos. Os amigos dele e os amigos dela ficaram ansiosos pelo o que poderia acontecer lá, mas logo esqueciam por causa da chegada dos seus próprios momentos de sexo adolescente selvagem e louco.

Ela vestiu um biquini e mostrou para ele. O corpo em convulsão. No nariz, prevalecia o cheiro dos pássaros mortos. Ele observou a anatomia do corpo dela e fotografou com a mente. Ele a veria muitos anos depois, o corpo dela estaria destruído pelos excessos, pela maternidade e o rosto pelo cinismo da vida. Os olhares iriam se encontrar por alguns segundos, mas nada aconteceria.Nada jamais aconteceria de novo. A vida aconteceria, as novidades se tornariam raridades.

Ele alisou a coxa dela de forma que sempre tentava subir as mãos para dentro do biquini dela e .. .Bem, não vou descrever essa merda. Eles transaram . No fim de tudo, um " você é o amor da minha vida" saiu da boca de um deles. A moça estava mais aliviada. Por alguns minutos, ela esqueceu do horror dos pássaros mortos. Por alguns minutos. Breves minutos. O cheiro estava voltando. Pior, muito pior do que antes. Agora, ela havia violado o luto pelos pássaros morto com a sua luxúria. E os pássaros mortos não a perdoariam por isso.

Os rapazes pulavam na água que espirrava para todos os lados. O sol passava por entre as gotas as tornando coloridas. O som das risadas contaminava o ar. Um tronco imenso era levado pela correnteza. A vida pulsava no tronco: minhocas, musgo, insetos, mesmo assim, ele seria levado pela correnteza e engataria em alguma margem. A natureza que mora nele iria se findar. O tronco secaria e se despedaçaria aos poucos.

Não existe beleza na forma que a vida acontece, não existe poesia no fracasso, nem no amor, nem no sucumbir dos homens, nem nos pássaros mortos. A vida é sem poesia e gosta disso.Todo sonho é interrompido por um susto qualquer. Nós acordamos com corpo cansado, o hálito tomado pela podridão. O sol nas nossas cabeças não nos torna pessoas feliz,es pelo contrário, nos faz suas, seca o nosso cabelo, nos causa câncer.

Os pássaros que deviam ser a prova da dádiva maior de Deus: o poder de voar por aí e só tocar o chão para descansar, são tão burros que sempre morrem eletricutados no primeiro poste de energia. O castigo sempre chega. A maré do horror toma tudos e todos. Os corpos inchados apodrecem na margem e as garças, animais tão belos, arrancam os olhos das órbitas e voam para algum lugar. A morte as espera em algum poste.

O casal sai de mãos dadas do chalé. Eles pisam na terra ainda virgem daquele lugar. Na novelas adolescentes mostra como se usa preservativos, mas não de forma ilustrativa.Dessa forma, a vida acabou penetrando os óvulos da moça apenas para ser arrancado por um gancho terrível em um aborto. Os sonhos dela serão terríveis. O feto escorrendo pela vagina de forma viscosa, subindo pelas coxas , mamando chorume nos seios para depois regurgitar nos lábios de sua amada mãe.

O amante, o deformado amante vai sussurrar nos ouvidos dela o quanto a ama; o quanto o azul do mar parece cinza sem ela; o quanto o canto dos pássaros parece com garfo arranhando um tabuleiro de metal sem ela; o quanto ele ele precisa do liquído amniótico dela saciando a sua sede sem fim. Ela grita. Tanto amor a destrói, a deforma, a faz sentir vontade de vomitar. Ela afasta o filho amante com um empurrão. Ele se esborracha na parede. O sangue dele na parede vira algo parecido com uma teia de aranha.

Mas é um futuro distante. Os rapazes voltam de uma pescaria. Eles voltam com um peixe bem grande. Os professores acendem a grelha para assar o peixe. O pagode começa. Eu olho a paisagem. Bela paisagem. Daqui a algum tempo, ela não vai mais existir ou, se existir, será apenas arvores coníferas. Nada é eterno,aliás estou sendo um pouco radical. A única coisa eterna é a certeza de que tudo vai ser destruído no fim.

Ela se afasta do cheio do peixe assado. O peixe a faz lembrar dos pássaros. Ela se ajoelha em algum lugar da campina e implora por algum sinal divino de Deus, que por sua vez, não tem muito o que dizer a ela. A imagem de Joana D'arc lhe vem a cabeça. A linda Joana D'arc em sua armadura brilhante, guiada pela voz de Deus.

A linda Joana D'arc ardendo em chamas. A fumaça emporcalhando o céu. A gordura escorrendo em um vala. Sem glória, sem vitória. Será que ela ouviu a voz de Deus antes de morrer? Será que ela já ouviu alguma vez na vida ou ela fez tudo aquilo apenas para morrer queimada e a sua fumaça subir na direção Dele. Do Deus de Davi, de Abraão, deIsaac, do holocausto, do pai desonesto que abandona o filho á morte, do sacríficio sem recompensa.

As lágrimas são muitas. É necessário bastante baldes para guarda-las, e se as jogar em alguma vala qualquer, elas se tornarão o próximo mar morto. Onde nenhum peixe nada, nenhuma rocha tem musgo, nenhum pássaro voa. Desta água ninguem irá beber.Aliás, ninguém vivo.

Ela começa a se tocar , enche a cabeça de pensamentos imundos: paus cheios de veias,sodomia, suor, calor humano, saliva, secreção, excreção e tudo mais. Fazer amor adia a morte, disse alguém aí, se tocar traz a morte para a sua cama. Os pássaros mortos não a deixaram mais. Ela desiste. Lava a mão no rio e grita desesperada. Um grito sufocado pelos gritos de felicidade das outras pessoas.

As pessoas comem o peixe de forma selvagem. A coordenadora do passeio suga a cabeça. Eu me recusei a comer. Odeio coisas do rio. Ela olha o peixe com nojo. Quando as pessoas terminam de comer o peixe, os ossos ficam espalhados na mesa . Ela junta todos os ossos dentro de um saco e leva para o quarto.

Na bagagem, ela trouxe uma caixa de sapato, onde ela guardava algumas bolachas. Ela deposita os ossos dentro da caixa , sai do banheiro,escolhe um local bem distante de todos e começa a cavar, cavar e cavar. Quando o buraco está bem largo, ela deposita a caixa e a enterra. "Vá em paz" ela dsse para o peixe, mas ele não respondeu.




quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Búfalos 1 de 1

O Curiaú, outrora ,foi um quilombo. Meu entrevistado afirma e ainda diz que até hoje o local ainda sobrevive como um último porto de seguro para os negros. Ele afirma não se orgulhar das raízes dele. Não pelo fato de ser negro, mas pela pouca disposição que os seus irmãos de raça tiveram para se livrar das correntes, mesmo quando essas foram destrancadas.

Eu questiono ele a respeito das milhares de coisas que contribuíram para os negros continuarem escravos e ele balança a mão com impaciência, dizendo que isso é papo para boi dormir. A uníca saida é o trabalho, ele prega esse lema para tudo o que faz para sí próprio ou para as pessoas que o cercam. Durante os dias em que esta incrível reportagem sobre o curiaú foi confeccionada, ele repetiu o maldito lema para toda situação que aparecia na frente dele.

Primeiro foi com a neta que chegou com o coração destruído em casa(viúvo, ele mora com um filho, cinco netas e a esposa do filho), ela tinha sido chifrada pelo namoradinho que a tinha trocado por uma qualquer.A moça fez um escandalo e amerressou umas coisas contra a mãe que a ameaçou com umas palmadas. O meu entrevistado atiçou a mãe da garota até a mocinha apanhar."Galinha nova a gente corta pela asa" ele fez um gesto com o dedo,imitando uma tesoura. Enquanto a moça chorava, ele explicou que a única saída é o trabalho.

Durante as nossas entrevistas, ele estava trabalhando em dois pequenos caminhões de madeira para os dois netos. Os caminhões serviriam para as crianças aprenderem sobre o valor do trabalho ainda na idade tenra. Eu perguntei qual era o brinquedo favorito dele quando criança e ele respondeu que não tinha. A obrigação sempre vinha em primeiro lugar, além do mais havia uma linda lagoa para ele brincar. Brinquedos eram obsoletos.

Fazia um bom tempo que ele sofria de depressão. Eu perguntei da nora se o motivo era a perda da esposa que tinha morrido tão recentemente, mas não era. Ele era assim desde jovem. O marido disse a ela que as crises haviam começado na infância deles e dos irmãos. A vó deles tinha morrido e o pai passou dois meses catatônico. Quando a esposa tentava consola-lo, ele a reprendia com violência, dizendo que ela era uma puta e nem chegava perto da figura magnifíca que era a mãe dele. Um belo dia, tudo acabou e ele foi trabalhar.

A família ficou feliz por ver o pai levantar de novo daquele calvário, mas ele voltou pior, mais rigido, mais severo do que jamais fora. Um dia, dois dos meninos brigaram e ele os trancou no armário. Um amarrado ao outro para eles lembrarem do valor da fraternidade. Por baixo da porta do armário, ele sussurrava que as aranhas podiam morde-los e a dor iria durar vinte quatro horas.As crianças berravam de horror. Ele observava tudo sentado na cama.

Depois da primeira crise, a depressão passou a ser um visitante constante na casa da família. Ás vezes, durante uma ocasião feliz como um jantar qualquer, ele caía no chão, se contorcia, rasgava as roupas, chutava o pé da mesa, derrubando a comida sobre as pessoas que gritavam de dor,devido a temperatura dos alimentos. A esposa pouco falava, pouco opinava. Ela era cristã devota, laços além do amor prendiam ela ao marido, como uma maldição.

Apesar disso, os rapazes foram bem sucedidos em suas profissões. Talvez na ânsia de se livrar logo do pai, eles partiram para cidades bem distantes de Macapá. Alguns voltaram, outros mandam cartões alegres, dizendo como é bom a vida onde eles estão. O pai ri com sarcasmo e diz que eles só o visitaram, quando ele estiver de osso branco.Deus, no entanto, tem um castigo para cada filho ingrato.

Em uma noite dessas, ele teve um sonho que adora repetir para todos: ele estava morto, semi-afundado num dos diversos lagos do curiaú, nu. Apesar de odiar os seus irmãos preguiçosos, aquele lugar ainda é a mais bela das lembranças. O cheiro fresco da lagoa, as garças, o verde, as coisas morrendo e nascendo. Bem, de volta ao sonho, ele estava nu, como eu já citei.O peito para cima. Ele estava boiando da mesma forma que as pessoa bóiam no mar morto, sem jamais afundar.

Sim, a lagoa era mais densa que ele.

Ele estava morto, os peixes comiam a face dele e o resto do corpo até não restar mais nada. Agora ele era os peixes e vice-versa. Nadava em cardume, era pescado, comiam outros bichos submarinos ou não. Nada dispersava o cardume, pelo menos até os bufalos surgirem. Terríveis, gigantescos, eles destruiam tudo o que viam pela frente com o seu trotar interminável. O mato era pisado, as garças voavam, a terra tremia, os frutos caíam das árvores e o cardume era cruelmente separado.

O cardume se dispersava e cada parte dele era separada. A dor era terrível. Terrível demais até para um sonho. Então ele acordava desesperado, ligava o aparelho de oxigênio, enchia a mão de remédios e repetia para si mesmo que a única saída era o trabalho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A vida sem vaidade 5 de 5: O fim do voto de pobreza

Quebrei o meu voto de pobreza, um dia antes de vir para Macapá. Ele não fazia sentido, aliás, nunca fez. Meu primo me perguntou de onde eu tirei tal idéia e eu expliquei para ele sobre o que eu vi na tv: Pessoas esmagadas contra a grade, lutando para continuar vivas, livres do tédio. Ele me olhou com bastante pena e disse que me levaria no aeroporto.

Minha vó tinha viajado um dia antes da minha partida. Eu cheguei tão bebado da comemoração do aniversário de um amigo que não pude me despedir dela. No entanto, no pequeno tempo que eu fiquei lá, ela anunciou que faria uma obra radical na casa. Iria por tudo no chão e refazer de novo. Fiquei extremamente chocado e lembrei a ela de que obras estressam todos as faixas etárias. Ela nem ligou.

Eu fui até a unidade de polícia do local e me despedi dos guardas e do delegado. Eu também dei o endereço deste blog e expliquei que eu nunca tinha sido do coletivo palafita. Eles riram e me pediram para eu nunca esquecer do número 190. Eu disse que esse número estava gravado na minha pele de tantos baculejos escrotos que eu levei na minha cidade natal. Eles riram, eu também. Não visitei o posto de saúde devido ao meu trauma com o episódio da van.

Voltei para a casa e olhei para a estante da sala vazia. Uns três dias antes, a minha vó começou o processo de encaixotamento das coisas. Tudo que era inútil era cruelmente descartado. Meus primos , minha irmã e eu passamos o dia todo guardando e jogando coisas foras. Um touca de papai noel que a minha vó usava desde a nossa infância foi a primeira a ir para o saco preto de lixo.

As coisas que tinham ficado na casa que pertenciam a minha tia morta foram quase todas descartadas. Alguns óculos berrantes, uns lenços berrantes, alguns documentos velhos. Eu peguei uma carteirinha velha que tinha uma foto dos tempos da faculdade dela e guardei, em segredo, no meu bolso. Sempre preciso de um souvenir dela.

Uma estátua de um gato preto que eu sempre gostei de ver, desde criança, caiu no chão e foi removida para nós não pisarmos nos cacos. Livros dos tempos da faculdade dos meus tios e da minha mãe foram empilhados e levados para o lixo." Esses livros estão defasados", explicou a minha irmã.

Havia um quadro, perto da escada que a minha vó quebrou a moldura, rasgou a gravura e depois jogou dentro dos sacos de lixo. A regra era se livrar de qualquer coisa velha demais. Dos relógios velhos que ficavam na sala de janta, apenas o mais moderno e adequado( ele mede a temperatura) iria ficar na casa nova.

Biblias e mais bíblias foram para o saco. Assim, como um cachorro de pelúcia que eu gostava de brincar muito na minha infância. Uma boneca estranha que a minha vó chamava de Maria-sete-saias ficou na mesma caixa que nossa senhora de nazaré e uma foto minha de quando eu era um bebê gordinho feliz.Eu imaginei como a obra seria violenta. Sim, seria terrível. Imaginei o vidro das janelas sendo quebrados, as paredes sendo derrubadas por uma máquina qualquer, a escada de madeira sendo despedaçada até não restar mais nada. É triste demais ver um lugar pela última vez.

Eu viajei para Macapá, durante um daqueles vôos da madrugada.Tudo muito tranquilo demais, sem tremores, sem oscilações. Que bom. Uma queda certeira iria tirar a minha vida de forma terrivelmente rápida e eu acho que ainda não quero morrer. Cheguei em casa, esperei pela minha cadela morta para me recepcionar. Ela não veio. Ela morreu.

Eu troquei de roupa e tentei dormir. Não consegui. Fiquei com os olhos fechados, tentando contar carneirinhos, mas eu sempre tenho sonhos terríveis com carneiros. Jesus era um carneiro. Será que um dia, eu vou imaginar vários dele, saltando cercas, enquanto sangra de forma louca? De qualquer forma, não seria bom para dormir.

Depois de um bom tempo, o sono começou a vir. Mas antes, eu lembrei de uma cena. A última cena do Útinga. Um dia, antes das obras da primeiro de dezembro começarem, o governo delimitou que algumas coisas teriam que sair para a nova rua entrar. Muitas pessoas tiveram que mudar de casa. Minha tia mal tinha concluído a construção da casa dela, quando recebeu a notificação que a casa teria que sair de lá.

Uma ávore particulamente grande foi condenada. Sempre achei árvores coisas meio inúteis, afinal, elas não latem, nem emitem luzinhas engraçadas.Um dia, alguém me disse que as ávores, assim como brilho das estrelas, são testemunhas de um passado remoto, distante, incontavel, fora dos nossos padrões de sei lá o quê.

Talvez, seja verdade.

As raízes dessa árvore eram fincadas na terra de uma forma absurda. Fora da terra, elas mediam uns cinco, seis metros de cumprimento. Por baixo da terra, esse tamanho devia ser bem maior. Para derrubar a ávores, foram necessárias muitas cordas amarradas em seu tronco. Os homens puxavam de forma louca para derrubar o gigante.

As pessoas saíram do conforto de suas salas para ver a cena. O chão começou a tremer. As raízes estavam sendo arrancadas do chão.Todos estavam fora das suas casas, quando a árvore começou a cair. Alguns tiravam fotos com o celular e eram assaltados logo em seguida. Era uma cena para recordar.

A árvore atingiu o chão. O som da queda foi amplificado pelos diversos tubos de tratamento de água que haviam por ali. As pessoas tamparam os ouvidos. Uma nuvem de poeira subia e cobria tudo. Uma mulher soluçava. Quando a nuvem de poeira baixou, as pessoas voltaram para as suas casas. Um morador ficou irritado demais pelo fato de ter perdido uma mensagem de jesus dita por um médium famoso.

" O barulho da porra da árvore foi alto demais" afirma o morador.








Selo de ouro




Ai, sou tão tapado que não me toquei desse selo de ouro. Bem, antes tarde do que nunca. O selo de ouro é uma iniciativa para divulgar blogs e também para sei lá...mostrar os blogs que a pessoa realmente admira para outras pessoas.Uma tarefa bem dificil para mim, uma vez que todos as pessoas que eu ia indicar já foram quase todas indicadas. Dessa forma, só me resta o critério de divulgação. Aí vai a minha lista de blogs:

www.marvincross.blogspot.com

www.oandarilho7.blogspot.com

www.neo-ateu.blogspot.com

www.luizflfacanha.blogspot.com

Ao aceitar receber o selo, os indicados devem cumprir quatro procedimentos básicos:

1° Colocar a Imagem do Selo No Seu Blog;

2° Indicar o Link do Blog Que o Indicou;

3° Indicar Outros Blogs Para Receberem o Selo;

4° Comentar nos Blogs de Seus Indicados Sobre o Selo.


Obrigado aos blogs Sindrome de Proteus e Fecal brother pela indicação.eeeeeeeeeee



terça-feira, 17 de agosto de 2010

A vida sem vaidade 4 de 5: O passeio de van

Uma das assistente sociais me ofereceu café e eu recusei por causa do meu voto de pobreza e assim eu fiz com muitos copinhos de plástico que me ofereceram. Teve um momento crítico que eu não conseguia mais recusar e comecei a chorar. Expliquei o meu drama pessoal para as pessoas que estavam lá e elas começaram a chorar e aceitaram que eu não queria tomar café.

Eram seis na van: Eu, uma dentista, uma médica, um assistente de enfermagem, uma assistente social e o meu drama pessoal. Eu cobri o meu lugar na van com um jornal para não contrair as bactérias que as pessoas costumam a soltar pelo ânus e tambem eu levei escondido na minha mochila, dois vidros de alcool gel. Quem lida com a massa sempre está a mercê de doenças terríveis.

A médica perguntou qual era a minha experiência com essas coisas e eu disse que já tinha estagiado em um coletivo de cultura que lidava com algumas pessoas pobres também.Ela perguntou o que era um coletivo de cultura e eu disse que não sabia exatamente, mas o tempo que eu passei lá foi sei lá. Ela aceitou a resposta.

Nós descemos na entrada de uma grande baixada. Eu fiquei horrorizado com a possibilidade de ter que andar por todo aquele inferno e disse a elas que não estava me sentindo muito bem. Elas responderam que nunca se sentiram bem na vida inteira delas. Então nós descemos a ladeira que nem de longe parecia uma ladeira, pois era quase uma linha vertical. Perdi a conta de quantas vezes eu tropecei e todos da comitiva riam de mim. Podem rir, filhos de uma puta.Nunca tinha vindo nesse lugar. Ficava bem antes do portão da COSANPA e nem de longe parecia com o Utinga.

Não sei como esses miseráveis conseguiram, mas eles ainda eram mais pobres que as pessoas da rua da minha vó. Ao invés das casas de madeira ou de barro do Utinga, o que havia era caixotes. Pequenas estruturas de madeira suspensas por 6 ou 8 paus. Eu quis tirar fotos, mas fui advertido dos perigos daquele lugar. Isso é uma favela? Não, não é uma favela, me explicou a assistente social. Perguntei se eles estudavam o que era favela no curso de serviço social e ela me olhou de forma assassina.

A primeira casa que nós visitamos ficava nos fundos de um açougue em que uns pedaços de carne ficavam no balcão em contato com as moscas.Devia ser algum tipo de propaganda especial mostrar que até as moscas preferiam a carne desse açougue em detrimento dos outros. Tampei os meus olhos com a mãe, fingindo me proteger do sol. Sem sucesso, uma criança pegou um pedaço de carne do balcão e começou a jogar para outra, começando um jogo hediondo que me causou ânsia de vômito.

Quando chegamos a casa-alvo, eu já estava tão enojado que mal conseguia ficar em pé. O dono da casa não tinha um braço e o nome dele era a junção do pai, da mãe, de uns tios e de algum telescópio famoso. O dos filhos idem. O da mulher era Vânia. Todos foram examinados pela equipe. Quando uma das crianças abriu a boca, a dentista olhou com aquela cara que os médicos de filme de câncer fazem quando o paciente ja está careca e em estado terminal. A assistente de enfermagem perguntou se eu não queria perguntar nada e eu disse que não. O dono da casa chamou a atual prefeita de lésbica e se despediu de nós.

A médica me advertiu de que eu não estava cumprindo a minha tarefa como jornalista e que eu não deveria deixar passar essa chance de estar cara a cara com a pobreza. Eu assenti de forma educada, desejando que ela morresse na minha frente. Ela e todas aquelas pessoas desgraçadas.Chegamos a segunda casa. Aliás, "casa". Um caixote suspendido por umas vigas embaixo. De lá, saiu uma mulher e três filhos com as caras bastante entediadas. Peraí, pobre não se entendia porque vive se fodendo? Não foi por isso que fiz esse voto idiota. Fui entrevista-los.

O nome da senhora era o nome do pai+o nome da mãe+ o nome de uma vacina famosa. Perguntei algumas e descobri que ela morava no Telegrafo, mas teve que se mudar de lá por causa do pedágio. Pedágio para quê? Para ser fodida? Ela me explicou que os meliantes do Telegrafo cobram pedágio, depois de um certo horário e ela não queria mais ter que conviver com essas coisas. Perguntei do pai das crianças e ela disse que foi unzinho que ela conheceu por aí. Eu disse a ela que as repostas estupidas que estavam sendo dadas a mim estavam fazendo voltar a minha vontade de me matar. Com força total.

Terceira casa. Altos e baixos. Um mulher loira desceu de lá. Nossa, se esse lugar fosse um complexo penintenciário, ela seria a Rita Cadillac. Ela cochichou com a médica que chamou a assistente de enfermagem. Devia ser DST. Essas velhas loiras vadias sempre tem DST. Aliás, toda loira tem.Se você é morena, a DST vem junto com a tintura. Amarelo na cabeça, amarelo na buceta. Vadias, desgraçadas, imundas, vagabundas. Dentro da casa havia um tapete brega, umas fotos de Jesus na parede e um quadro imenso com um tigre com a boca aberta.

As três saíram do quarto sorrindo. Vadias. Deviam ter fodido de forma louca enquanto eu estava padecendo lá, destruído pelo meu voto de pobreza. Comecei a lembrar do meu horror da minha existência e vomitei diante de todos. A mulher loira me acompanhou. A assistente social virou o rosto, constrangida."Não vomito, mas vomito com pobreza. Me desculpem" dizia eu, enquanto limpava o vômito com o meu bloquinho de papel.

A equipe me ajudou a sair da casa da mulher loira. O sol era o de meio dia. O suor escorria como uma cachoeira no meu rosto. Eu tambem sentia os pêlos da minha virilha aderindo de uma forma terrível com o suor. Assaduras. Eu precisava de uma pomada para assaduras que eu sempre uso nessas situações. Eu disse para a enfermeira e ela me olhou com repulsa.Eu expliquei a ela que não era viado, mas naquele momento, a pomada era essencial para a minha existência.

"Não era assim o seu trabalho no coletivo palafita?" perguntou a médica." Não, não era assim. Não tão degradante. Se tratava apenas de alguns músicos, poetas e fotografos pensando em fazer festas para as pessoas. Existe muito iguais ao coletivo no país, realizando festas, animando o coração das pessoas com lindas músicas, peças de teatro, editais de cultura e coisas do tipo. Eu não era exposto a tanto horror, a tanta degradação. Me sinto o último dos desgraçados nesse lugar terrível. A van está tão distante agora, assim como o coletivo palafita, aquelas pessoas alegres, cheias de um amor sem igual.Não há mais amor, nem esperança. Eu estou nu diante do olho de fogo" expliquei para a comitiva médica que agora me chamava de promoter gratuíto.

A nossa próxima parada era uma casa com dois idosos na frente. Ele capinava uma pequena porção de grama. A mulher estava sentada com três gatos e mais quatro no chão. A pressão dela e do marido foi medida de forma entediada pelos enfermeiros. Eles pareciam entediados. Pobres, fodidos, mas extremamente entediados. Ao ver o tédio deles, a minha euforia foi diminuindo mais, assim como o suor da minha virilha. A senhora nos ofereceu um pouco de água. Água água mesmo, sem gás.Voltamos para a van que saiu daquele lugar aos tropeços, fazendo as minhas hemorróidas sangrarem.