domingo, 8 de agosto de 2010

Planeta Góes 9 de 9: O homem sorridente

Uma família de negros mora na rua da casa da minha vó paterna. Eles moram em um casebre de madeira menor que o meu quarto.Duas portas e quatro janelas. O casebre é derrubado de dois em dois anos, pois a madeira precisa ser trocada por causa da tinta dos numeros dos candidatos que sempre enfeita a fachada da casa.

Um dos filhos é flamenguista. Ele sempre ameaçou atear fogo no corpo nas derrotas do time. Um dia, o time perdeu. Ele ateou fogo no irmão caçula.Queimaduras de terceiro grau. Alguns me disseram que a pele estava tão queimada que, de vez em quando, umas bolhas estouravam.

Igual bacon, quando se coloca muito óleo na frigideira.Eu adoro bacon.

A matriarca da família tem um pé torto e tem dificuldades para andar. Ela se apóia em uma bengala, mesmo assim, ela teve sete filhos.Conheci muitas pessoas que são deficientes e mesmo assim tem filhos. Acho que transar com aleijados era uma tendência na época.

Na época de eleição, um homem sorridente sempre visita a familia. Beija o rosto das crianças sujas, comenta com os habitantes da casa que o chão precisa de um tapete novo,traz um nova dentadura para os idosos. Ele almoça uma comida que ele jamais engoliria na sua própria casa. Os dentes das crianças, podres e sujos de farinha, lhe desperta um nojo profundo.

As pessoas da casa começam a listar as dificuldades da família. Muitas dificuldades. Uma das filhas da senhora aleijada sorri de forma insinuante. Ela é lésbica, porém, nos anos de eleição, ela muda de idéia. Ele já comeu ela em um motel com espelho no teto. Os amigos ficaram impressionados com o relato de como a buceta dela peidava enquanto ele a penetrava.Será que eles teriam a mesma reação ao saber que ele se lavava mais que o normal depois de fazer sexo com a moça?

Um cachorro marrom de três patas manca pela casa. Ele espera pelos restos do almoço. Um dos rapazes joga um osso para ele e o animal manca loucamente atrás. A família ri. A velha aleijada é a que ri mais alto. Ela se indentifica com o cachorro aleijado. Irmão de causa. Falar de cachorros é doloroso demais para mim.

O homem sorridente tira milhares de blocos de papel do carro. Papéis cheios de rostos com uma expressão de felicidade tão vazia quanto a dele.O sorriso demonstra confiança. Se um dia, o leitor for atropelado, quebrar vários ossos do corpo, cair na lama e encontrar um desses santinhos, certamente, a confiança de dias melhores virão a sua mente.

Os habitantes da casa recebem os papéis. O cheiro de algo novo invade a casa. Os rapazes mais fortes tiram galões de tinta do carro, mas são proibidos de usa-los, pois são analfabetos e podem trocar os números. Uma das crianças tenta fazer um barquinho com os papéis, mas é espancada pela mãe.

A estratégia de distribuição de santinhos é minunciosamente explicada . As moças que sabem escrever, irão cuidar da pesquisa de opinião.O homem sorridente explica que é bom comprar roupas novas para o ofício.Tudo explicado e ele deixa a família. Abraça cada uma daquelas crianças imundas. Muitos beijinhos na bochecha. O vômito sobe, mas ele se controla.No caminho para casa, ele refaz o seu esquema mental com o intuito de saber se não esqueceu nada.Não, ele nunca esquece.

Em casa, ele chama a empregada. Ele já comeu ela também em um motel com espelho no teto. Os amigos ficaram impressionados com o relato de sexo anal. Hoje , no entanto, é uma ocasião diferente. O filho dela de 19 anos se enforcou. Ele se finge de pesar e afirma a empregada que irá ajudar no que for preciso e dá um bloco de santinhos para ela. O homem da foto sorri para a mãe do rapaz morto e ela sorri para ele. Conforto.

A empregada agradece a atenção. Ela diz que nunca esperava isso do filho. Ele tem vontade de rir com a ingenuidade dela. Nós dois temos. Mesmo assim, ele diz a ela que essas coisas são normais, todo homem deve ter tido isso, para finalizar ele culpa uma garota qualquer. A empregada pensa, pensa, pensa e acaba constatando que não sabe o motivo da morte do filho.O mesmo vai acontecer com ela daqui a alguns anos, quando ela cair em uma festa de família. Os médicos vão olhar, olhar, olhar e depois vão comprar alguma coisa para comer na esquina.

A casa dele é grande. Nove portas e umas quatorze janelas.A esposa dele possui a tradicional beleza amapaense. Ele não sabe quando deixou de ama-la.Ele não faz amor com ela em um quarto de motel com espelho no teto. A rotina acaba juntando os dois na mesma cama. Existe um retrato de Jesus na parede. Um jesus crucificado e extremamente entediado. Outras imagens sagradas se espalham para casa. Uma vez, ele perguntou se não era uma idéia por uma foto do homem, do governador em uma parede do quarto.Boa idéia, ela disse.

O retrato está lá.O fundo dele é azul. A água do rio amazonas é marrom.Parece merda de caganeira. Somos banhados por merda de caganeira. O riso toma conta de mim. O riso vira convulsão. A convulsão vira choro. O choro vira angústia. A angústia vira indiferença. Um homem tem uma convulsão do meu lado e eu rezo para que ele morra logo.

O homem sorridente faz uma visita a feira. Ele é recebido pelos feirantes com uma emoção sem igual. Essa emoção garantirá a cada um deles, uma nova barraca.A feira desperta algo ruim neles. Nojo do cheiro, das pessoas, do calor, da situação, da poeira invadindo os alimentos. As pernas dele tremem nessa hora. Um tremor que não derruba. Ele já é acostumado. Eu também. Ele coloca um bloco de santinhos em cada barraca e se despede das pessoas.

No caminho, ele encontra uma amiga. Uma amiga dos tempos de colégio. Gorda como uma vaca.Ela o importuna falando da vida medíocre dela que não tão diferente da vida dele. A conversa dura uns 10 minutos. O cheiro de camarão e peixe irrita o nariz de ambos.A despedida é feita com dois beijinhos no rosto.O rosto grudento dela desperta uma angústia terrível nele.

Um outdoor gigante é levantado em uma grande avenida. O candidato se eleva em tamanho grande. Vizinho dele, outros candidatos com sorrisos tão vazios quanto . O nosso protagonista também tem o seu sorriso vazio estampado no rosto. Perto dali, ele observa um cachorro preto, morto, com a cabeça esmagada.

O cachorro preto, disse a mãe dele, é o demônio.

Bem, se for assim, o demônio também padeceu aqui nessa terra.As pessoas que passam do lado ficam realmente enojadas com a porqueira do cadaver do cão.Ele chega perto do cachorro e repara que as tripas dele foram um estranho padrão, uma mensagem.Deve ser algo místico, algo que os nossos antepassados saberiam ler e nós esquecemos.

Ele deixa o cachorro e se dirige a casa da amante. Emporcalha os peitos dela com uma espanhola e a faz lamber. É o que ela merece. Ele memoriza todos os seus movimentos durante o sexo para contar aos amigos mais tarde.Depois de tudo, ele observa a casa da mulher. Um mal gosto terrível. Cortinas vermelhas. Ela parece a porra de uma cigana. Ele não podia esperar nada melhor .

Ela faz um café amargo. Ele se engasga. Está forte demais.Eu poderia ler o meu futuro nas borras desse café, ele reclama. Ela deita no colo dele e pede desculpas. Ele tira o pau para fora e força na garganta dela. O susto é tanto que ela vomita e é estapeada para deixar de ser tão otária. Eles se despedem . Ela escova o dente para tirar o gosto de porra e vômito da boca.

Agosto é o inicio do verão em Macapá. Quatro meses terríveis de tortura. Não há arvores suficiente para se proteger do sol. Os mais fracos padecem no inferno, os mais fortes usam ar-condicionado.A vegetação fica na frente da minha casa fica completamente seca.Uma faísca vira um grande incêndio. Ano passado, isso aconteceu. Nós ficamos sufocados com a fumaça. Quando tudo passou, a vegetação ficou completamente destruída.Uma arvore antiga e grande virou uma tocha gigante e depois morreu.

Eu olhei a paisagem da frente da minha casa com o coração desolado. Sempre gostei da reação das pessoas ao verem o imenso matagal onde eu moro. A lagoa, as garças, o barulho de grilo e tudo mais pareciam ter sido engulidos pela fumaça. Os meus pulmões tambem. Nesta mesma época, a expofeira drenou toda a energia da cidade. De três em três horas, só havia silencio e cheiro de fumaça. Parecia o fim de tudo que era vivo.Na verdade, era.

Nosso protagonista ( o homem sorridente, não eu) visita um asilo. Aquelas pessoas que moram lá ficam felizes com a sua visita. Ele cumprimenta uma por uma. Um dos moradores não tem todos os dedos da mão direita . Justamente a mão que as pessoas usam para cumprimentar. Nosso herói disfarça o nojo com um sorriso amarelo e distribui milhares de sorrisos amarelos impressos entre os velhinhos. Um( que não tem uma perna) comenta que vai fazer de tudo para votar esse ano.Isto é, se ele ainda estiver vivo .

O nosso protagonista reza para morrer antes de precisa ir para aquele lugar.Ninguém morre porque quer. Não há saída. Na verdade, existe uma.

Uma coisa interessante que eu estava notando enquanto escrevia esse último capítulo dessa reportagem em nove partes é que não situei o nosso personagem em nenhum horário específico. Vamos então dizer que o próximo paragrafo está situado as 17 horas da tarde.Estamos quase no fim. Não se preocupem. Este texto não será tão grande como os outros.

Dezessete horas. Nosso protagonista visita o comitê eleitoral. Só há um outro homem sorridente lá. Ele comenta com o colega sobre a espanhola que executou nos peitos da amante. O feito soa como um feito e os dois começam a rir. As tarefas são verificadas. Todas foram realizadas com sucesso. Os dois se despedem. Antes de ambos irem para as suas, o colega comenta que sonhou com a maré transbordando, engolindo tudo.Depois desse sonho, ele não conseguiu mais dormir.

O homem sorridente recomenda lexotan ao colega e sai.

O dia do nosso herói vai chegando ao fim. Ao chegar em casa, ele come algo requentado. A família nunca foi de jantar toda na mesma mesa. Um bebê é incendiado na tv. No outro canal, a história de um casal que estava louco de amor. Ele fez uma canção sobre cada pedaço do corpo dela, o que foi bem conveniente, pois o corpo dela foi achado em mil pedaços debaixo de uma ávores debaixo daquelas ávores que eu sempre esqueço o nome.Ele muda o canal de novo. Uma reporter entediada com sotaque amapaense fala de uma carcaça negro de um cachorro morto que estava incomodando os habitantes do bairro. A camera foca o rosto do cachorro. Mesmo destruido, o rosto fita o espectador. O rosto do diabo.

Nosso herói desliga aTV apavorado. Tenho vontade de abraça-lo e dizer que, infelizmente, não há nada o que fazer. Mas eu não posso. Não, não posso. Preciso da morte desses homens para adiar a minha própria morte. Ele olha o santinho e o candidato dá aquele sorriso que salvaria a alma de qualquer homem.

Então, ele sorri de volta para o candidato.













8 comentários:

  1. amigo está otimo, seria melhor se houvesse desgraças a cada paragrafo. vamos votar no atual governador

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  2. Mais um texto que traz risadas e ânsias de vômitos. O importante é soltar uma e prender a outra. Oh, Deus, sare essa mentezinha tão perversa!!! Amém.

    P.S: Senhor, sare a perversidade, mas deixa o talento! :)

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  3. Ah, nada haver....
    O texto está ótimo..
    Quero transar com vc marvin e fazer sua mente ficar perversa igual a do iguinho..
    kkkkkkkkkkkkkkkkk

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  4. igor.
    você faz do mundo um lugar melhor. em breve seu textos serão usados nas escolas como livros didáticos. sem censura.
    seus textos são cheios de imagens fortes como uma necrópsia que mostra as entranhas dos absurdos que nos rodeiam..
    você é meu herói.

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  5. minha meta é facilitar o acesso da humanidade aos seus escritos.

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  6. cara, texto perfeito. pura paisagem amapaense expresssa através dessses textos. sempre estou de frente com essas situações decadêntes. não sei se os teus textos me deiixam mais vivo ou morto. eu quero me sentir vivo! abraço!

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  7. Grand finale! A mais bela poesia tucuju (em prosa, obviamente). :P

    Só que as pessoas costumam se cumprimentar com a mão direita, não? :P

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