quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Magave 1 de 8: A base aérea do Amapá

Dirígivel pousando na base aérea do Amapá.


Quando eu, finalmente, consegui coragem para ir na casa dos Magave, o nosso trabalho já estava fadado ao fracasso.Tínhamos um plano ambicioso para a nossa conclusão de curso: íamos nos aproveitar da sede de sangue e formatos estéticos para contar de uma forma totalmente diferente, a a história da família Magave.Foram cinco longos meses morrendo na praia, se fodendo e , diferente das outras histórias edificante que eu ja tinha lido na minha vida, e as coisas estavam bem longe de terminar.

Bem, antes de dar inicio ao making-of mais triste da história da humanidade, eu irei explicar de onde tirei a minha triste idéia. Tudo começou em mais um dia improdutivo na faculdade de jornalismo, um curso que eu escolhi por pura falta de opção e para diminuir a minha sempre tão terrível melancolia.Comecei a fazer esse curso em 2006, um ano depois do horror terrível que consumiu a minha alma em outra cidade. Uma época em que qualquer horror era incomparável e a dor do meu ser atingia níveis críticos.

No anterior a 2006, eu fui passar um curto período de 3 meses na casa da minha vó materna. Eu e a minha tia moribunda. Esse periodo compreendeu o dia dos finados ( que a minha tia dizia já comemorar como se já estivesse morta), o natal ( que ela fazia questão de dizer a todos que seria o último), o ano novo ( que ela dizia ser o ano final da vida dela, me fazendo ter uma séria crise de ansiedade e asma), o aniversário da minha tia( que ela se recusou a tirar fotos por causa da careca), o meu fracasso no vestibular ( que ela já dizia que já sabia que ia acontecer, pois ela me considerava um retardado), a perda da virgindade do meu primo ( que a minha tia espalhou para a família toda no almoço) e a própria morte dela( que eu não vi).

Nesse período, a casa da minha vó se enchia de parentes que gostavam de prestar solidariedade a semi-morta, crentes oportunistas, crianças e eu. Havia pessoas estranhas visitando a casa, pessoas bem estranhas. Duas, eu gostaria de destacar. A primeira era os vendedores de NONI.Um suco de fruto com poderes medicinais que eu sei bastante pouco, mas pesquisei na internet para fornecer aos leitores desse blog, uma noção do que é. Então vamos lá:

"O suco Tahitian Noni não é um medicamento.
Seus inúmeros benefícios para a saúde advêm de seu altíssimo valor nutricional. Ele é um alimento natural. Além dos aspectos nutritivos básicos (balanço calórico, protéico etc.).
Também pode ser considerado um complemento alimentar bastante completo, possuindo uma grande variedade de nutrientes e micro-nutrientes, dentre eles a proxeronina, cujos benefícios para a saúde são facilmente notados pela imensa maioria das pessoas que utilizam o suco por tempo suficiente para suprirem suas deficiências nutricionais. A verdade é que hoje em dia, quase todo mundo tem algum tipo de carência e desequilíbrio no que se refere à sua nutrição. É por esse motivo que as pessoas doentes (seja qual for a enfermidade) costumam beneficiar-se do suco Tahitian Noni. Muitos de seus sintomas se atenuam ao fazerem uso do suco, o que acaba por confundi-las, fazendo com que pensem que o suco as curou. Entretanto, a verdade é que essa melhora é o resultado da ação reconstituinte do Noni, que ao nutrir adequadamente as células, faz com que o organismo recupere seu funcionamento harmonioso, que se traduz em saúde e sensação de bem estar. Isso se deve não apenas à xeronina, mas à ação sinérgica dela e dos demais constituintes do suco Tahitian Noni."

Os vendedores de None apareciam sempre em todo sexto dia do mês. Uma mulher com uma aparência desgrenhada descia de um Pallio com uma grande mala. Eu e os meus primos ajudávamos a carregar a mala. Ela não agradecia. Havia um ar idiota e superior no rosto dela que era acentuado pelo nariz empinado . O marido vinha logo atrás, sempre atrás.Destratado pelos 6 degraus que compunham a escada que dava o acesso a casa da minha vó, ele afirmava que a esposa fazia isso apenas para se mostrar para os estranhos, pois na cama, ela ficava bem quietinha a espera do pau dele. "Coisas de mulher rá rá rá" ele dizia.

A mala era arrastada até o quarto que ficava a minha tia. A mulher que vendia o NONI era xingada pela minha tia  por fazer tanto barulho, por usar um perfume tão forte, por causa do leve cheiro suor que ela emanava por sair do carro e subir as escadas de concreto. A vendedora de NONI ria e dizia que a carequinha era braba demais, mas o NONI iria resolver isso.Então ela tirava uma garrafa com um líquido vermelho com uma etiqueta de um havaiano segurando um cacho de algo que parecia uvas vermelhas. Quando a garrafa era destampada, o conteúdo emanava um ar doce pelo quarto. Minha tia sentia ânsia de vômito e algum primi meu corria com uma pequena bacia para acudí-la.

O fato é que o NONI, de certa forma, exercia uma pequena melhora na minha tia. Os lábios ganhavam cor novamente e , raramente, ela abria um sorriso.Nós tentávamos rir com ela, mas eramos repreendidos pela sua vilania sem fim. Infelizmente, a quimioterapia tornava o NONI intomável. O cheiro doce esbarrava no enjôo sem fim do procedimento. Todas as ávores do Havaí que cresciam na mente do usuário pareciam secar até a morte. Os troncos pareciam ficar opacos, o céu azul parecia perder a cor e os amantes, na beira da praia, se contorciam com uma dor sem fim. Os olhos saltavam das órbitas e o horror dominava aquela terra vírgem.

Os segundos visitantes eram de uma pequena igreja, formada recentemente no Pará.Mais uma. Igreja do diagrama divino. Fundada em 1956, pelo missionário João Batista figueredo, a igreja conta com bastante fiéis no Brasil inteiro. Tudo começou quando uma das filhas do fundador caiu doente em uma bela tarde. A família era bastante católica e rezou bastante para a cura da criança, o que não deu muito certo, pois a criança morreu logo depois, engasgada com o próprio vômito, depois de ter tossido bastante.

Durante o enterro da criança, o pai sentiu fortes dores na região do abdômem por muitos e muitos dias. Ele foi levado para o hospital e depois de alguns exames, foi constatado que ele possuía a mesma doença da filha( e mais uma úlcera). Ele passava o dia todo consumido pela doença e pelos remédios. Nas alucinações mais loucas, a filha vinha direto do mundo dos mortos e lhe fazia um delicioso e suculento sexo oral. A filha dizia para ele algumas palavras sábias, mas ele não entendia por causa do pênis que entupia a boca da criança.

Um dia, a dor alcançou níveis horrendos e ele começou a gritar. A esposa, incomodada, saiu de casa e começou a gritar por ajuda na rua até parar e comer alguma coisa na lanchonete da esquina. Ele ficou lá , no quarto, sozinho como todo homem,fechou os olhos com tantas força que um desenho apareceu, quando ele abriu os olhos. Esse desenho:
O círculo da dor e as suas mútiplas camadas
Bem, não havia esses numeros e tal, mas o círculo de camadas apareceu dessa forma em sua visão e permaneceu o suficiente para ele transcrever em um pequeno papel. Uma coisa notável no círculo era que, dependendo da situação, certas camadas pareciam se destacar mais que as outras. Abatido pelo luto e pela doença, a região número 3 pulsava com mais força na sua vista.Bem, vou parar de contar a história da igreja, pois eu ainda tenho que falar do meu próprio drama pessoal e, pelo menos, iniciar a triste história que envolve eu e a também triste história da família Magave.

Por isso, vou explicar a idéia central da igreja. As camadas de dor mostram o quanto o homem está distante de Deus e cego pela própria dor. A missão da igreja, então, é fazer o fiel se livrar da redoma interminável desse terrível circulo e iniciar uma nova vida, onde unicórnios comem mato no quintal e tudo mais.Coisas que toda religião promete.

A primeira visita aconteceu em um dezembro realmente chuvoso. Seis pessoas de terno, desceram de um um kombi. Eles subiram os degraus que davam acesso a casa da minha vó. Uma mulher baixinha e gorda reclamou da coluna e foi repreendida por um irmão de igreja. "Quem acredita, não reclama". Minha prima abriu a porta para eles. No entanto, o portão que ficava antes da porta, estava cheio de cadeados. Começou uma chuva. Os evangélicos foram se ensopando enquanto a minha prima procurava pelos cadeados. "Quem acredita não se molha" disse um deles.

Quando eles finalmente conseguiram entrar na casa. A minha vó deu toalhas para se enxugar e ofereceu um café para eles esquentarem o corpo. A irmã gordinha aceitou. O chefe da comitiva perguntou para ela em que camada ela estava no círculo. Ela fechou os olhos e visualizou a pequena casa de madeira que ela morava na periferia daquele lugar, viu os filhos, o marido desempregado, a cadela Léssi e o círculo foi se formando. Ela começou a chorar e se contorcer no chão. O horror no rosto dela era visível. Os outros irmãos começaram a gritar de dor em solidariedade a irmã. A chuva lá fora piorava.

O chefe da comitiva desenrolou um papel com um circulo com umas dezessete camadas. Ele perguntou da gordinha, que ainda se contorcia, em qual camada ela estava. Ela apontou a camada número 12, azul claro. Sim. O azul claro das manhãs sem sol, onde os bois pastam, as borboletas voam sobre as floreso, o orvalho seca nas folhas. Todo milagre do mundo acontece nas manhãs de azul claro. Davi, o pastor anda pelos pastos, comtemplando a obra do Criador. Uma ovelha se fere em um espinho. O espinho se infecciona e mata a ovelha algum tempo depois. O cadáver apodrece entre as ovelhas que acabam morrendo também. Agora, todas as ovelhas apodrecem ou agonizam no pasto. Davi viu a morte, Davi perdeu a inocência. O gigante Golias tomba sobre  a terra. Davi agora é rei. Davi manda Urias para morrer na guerra. Bate-Seba deita, nua, no divã. O pecado destrói a estrela de seis pontas. O servo toca na urna sagrada e morre. Natã aponta o dedo acusador para o sucessor de Davi.

A pequena crente para de contorcer. O chefe da comitiva explica a ela que quem acredita não tem convulsões. Ela acena a cabeça concordando. Eles se dirigem para a cama da minha tia, que, agora, não passa de um pequeno reflexo do que já foi no passado. A cabeça sem cabelos, o corpo magro demais, a voz asfixiada, o braço queimado na radioterapia. O papel com o círculo é grudado na parede e aquelas pessoas explicam a minha tia como funciona. Minha tia não ouve mais. Se Deus é responsável pelas coisas, ele foi realmente cruel com ela. Ela os enxotou do quarto e ficou chorando durante meia hora. As pessoas que ficavam com ela estavam meio entediados das mesmas cenas sempre, por isso só restou a eles darem um longo e triste suspiro.

O chefe da comitiva explicou a minha vó que o trabalho demoraria para surtir efeito.Em maio, eles voltariam lá. Em maio, a minha tia ja estava morta. Seriamente traumatizado, eu voltei para Macapá( estou odiando essas novas configurações do blogger)e ingressei na faculdade de jornalismo.Foram três anos e meio de completa inutilidade. Eu sempre me espanto com a minha capacidade de ser um completo idiota em tudo o que eu faço. No último ano, eu ingressei no coletivo palafita e tive a minha incrível idéia para o tcc. Um quadrinho contando o hediondo destino dos Magave, uma família do município do Amapá. Para isso, eu contei com a minha parceira Danielle( que sofreu bem mais que eu no processo do trabalho) e muito azar.

Nossos trabalhos começaram no segundo semestre de 2009. A pobre Danielle se deslocava do extremamente longíquo bairro Universidade para a minha casa no Cabralzinho. Em todos os nossos encontros, eu estava completamente destruído pelo meu horror pessoal( que estava no auge naquela época). Dessa forma, nossas reuniões não eram nada lucrativas. A parte que cabia a Danielle( a monografia) andava perfeitamente bem. A minha ( o roteiro) nunca passava da página 4. Na verdade, devido a minha volubilidade com as coisas, eu não estava mais nem aí para o tcc e os Magave e , pensando bem, eu nunca tive, de fato, um envolvimento com todo o drama da história.

O trabalho todo era feito pela pobre Danielle que, jamais, reclamava.E assim passou Agosto, Setembro, Outubro, Novembro.Havia a necessidade da família ser entrevistada. Nós conseguimos localizar um Magave que morava na Avenida Fab, em Macapá. Marcamos a nossa primeira entrevista com ele. Eu faltei e fiquei em casa, choramingando pelo meu drama pessoal e depois saí para beber. A primeira entrevista ocorreu sem problemas, a minha parceira de TCC marcou um retorno e me informou que eu teria que ir. Isso me deixou irritado, pois eu tinha medo das consequências emocionais para mim ao falar com alguém que tinha sofrido um trauma tão grande.

Dessa forma, eu arquitetei para fugir mais uma vez desse terrível encontro. No entanto, eu não consegui. Então, em algum dia de novembro, eu e a minha parceira de tcc esperávamos pelo nosso entrevistado, que ainda não havia chegado em casa. A residência dessa parte da família Magave fica na Avenida Fab, perto de um depósito da companhia áerea GOL. A casa tem uma frente simples, há um pequeno portão de ferro que fica antes da entrada da porta principal. A casa parece ter outras seções na parte de trás, onde devem morar mais membros da família. Coisa bem normal em Macapá. Na frente da casa, há um daqueles carros com caminhonete e outro carros. Existe, também, um pequeno desnível da casa dos Magave para a loja da companhia GOl. As pessoas usam esse desnível para se sentar.

O nosso entrevistado era Francisco Magave, um dos filhos da senhora Nadir Magave que perdeu a vida naquele triste episódio. Na época, Francisco cuidou dos tramits que envolviam o funeral dos seus irmãos e de sua mãe, da intricada e quase sempre infrutífera investigação dos casos e da imprensa amapaense ( que não perdia a oportunidade de chama-lo de Raimundo). Hoje, ele parece seriamente afetado pela experiência. A nossa entrevistada sempre era interrompidas pelos constantes brancos que o entrevistado tinha. Para ajudar a memória, ele conta com um pequeno clipping de matérias da época, algumas fotos dos familiares mortos, laudos da perícia, carta dos acusados e só.

Algumas vezes, ele fitava o vazio e ficava nisso por dois, três minutos. Nós ficávamos bastante constrangidos e quando tentávamos retornar o assunto, ele já não conseguia mais voltar ao ponto de que tinha parado. O sol castigava o asfalto e o nosso estômago começava a sofrer demais. As diversas explicações fragmentadas do entrevistado criavam mais e mais fissuras na história original. Eu fechava os olhos e enxergava o círculo de dor com umas 90 camadas. Todas pulsando fortemente. A parte boa da entrevista é que muitos mitos a respeito da família foram caindo. O primeiro foi o de que a família toda morou a vida toda no sítio em que ocorreu o incidente.

O pequeno sítio, na verdade, era apenas uma propriedade da família. Os magave residiam na base aérea do Amapá. Na época, a base devia estar no seu auge. O local foi construído por causa da localização específica. Os Magave devem ter visto os muitos dirígiveis pousando na pista imensa. Esses traziam carros, tanques, armas, soldados e coisas do tipo. Meu avô presenciou um dirigivel imenso passando sobre a pequena cidade que ele morava, no interior de Vigia, no Pará. Eram imensos, silenciosos e faziam as crianças chorarem. As mães diziam aos filhos que as cordas que saíam daquelas coisas iria levar todas as crianças malcriadas para o inferno. As crianças choravam desesperadas.

Depois da guerra, os americanos foram embora e levaram toda a infra- estrutura da base. O lugar foi se degradando aos poucos. Com o acidente do dirígivel Hindenberg, a fabricação dos dirigíveis foi paralizada para sempre. O céu agora era dominado pelos barulhentos aviões. Não o céu do Amapá. Com a base desativada, os aviões pararam de pousar ali, as instalações da base foram tomadas pelo mato, as placas foram destruídas pela ferrugem. Hoje, só resta a pista, esburacada.






quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A piscina

Era uma vez, uma imensa piscina. A água era azul e uma espécie de gerador criava pequenas ondas artificiais para sacudir os banhistas e tornar a experiência do banho agradável para todos. Dez horas da manhã e a piscina estava cheia de banhistas de todas as idéias. O sol refletia nas bóias coloridas, nos músculos dos belos rapazes, na pele oleosa das belas mulheres, nos dentes das belas crianças.

O lugar era cercado por árvores coníferas, plantadas ali para dar um clima meio americano para o local. A vegetação nem sempre foi essa. Antigamente, as árvores dali eram árvores grandes, tortas, tronco grosso e os galhos eram cheios de um limo escuro fedorento. Com a construção da sede dos vendedores de cosméticos( onde ficava a piscina), esta vegetação deu lugar a algo mais esteticamente plausível.

"Os cones" explica a diretora do local " trazem uma aparência mais light para o local e transmitem as pessoas, a sensação de que eles estão na Carolina do Norte, onde fica a nossa matriz. Nós possuímos 250 sedes dessas, espalhadas pelo mundo todo. Há cones em todas. Padrão, sabe? Eu me sinto emocionada por fazer parte de algo tão grande. Desculpa, isso não são lágrimas. Caiu um cisco no meu olho"

Os banheiros da sede foram premiadas por uma revista local. São limpos, adequados, cheirosos e possuem muitos espelhos. De 30 em 30 minutos, um gás cheiroso é expelido por um desodorizador automático e limpa o ar com um cheiro de margaridas do campo. Na verdade, as flores não são tão cheirosas quanto os seus clones químicos que levam os seus nomes. Mas isso importa a poucos, na verdade, não importa a ninguém.

Uma unidade de primeiros socorros está sempre de olho na piscina. De vez em quando, alguma criança sem limites, começa a tossir de forma preocupante na água.Um salva-vidas pula na água e levanta o candidato a afogamento pela nuca para salva-lo da morte. As mães agradecem e espancam as crianças para elas não repetirem esse péssimo comportamento no futuro.

Em uma das bordas da piscina, está uma mulher, deitada em uma cadeira branca. Um guarda-sol a protege da luz. Essa exposição não é interessante para ela pois o corpo dela está cheio de falhas e mostra-las não a deixa feliz. Houve um tempo em que ela era tão linda que podia pedir a vida de qualquer homem descamisada que estivesse naquele amontoado de cloro, urina e gente idiota. Mas essa época não existe mais. Hoje, só resta a ela, o peso do tempo e as suas muitas sequelas.

Ela sente o banco desconfortável demais e tem vontade de chamar um dos garços, mas a voz dela anda meio falha esses dias. Não é faringite, nem alguma daquelas doenças que afetam a garganta. A semana que passou foi bastante estressante para ela e para a sua garganta. Segunda, ela abriu a janela e levou um ar frio bem no meio do peito. Começou a espirrar e ficou de cama até quinta-feira. Foi terrível sair de casa, ainda com os efeitos da gripe, e receber o sol bem no meio do rosto. O suor caía, gelado, do seu rosto.

Ela resolvera visitar um antigo amigo da juventude. Ele morava, recluso, em uma casa perto da dela. Quando jovem, ele era o desejo de homens e mulheres. Ele e ela eram os reis da festa. Um dia, ele levou um amante para a sua casa, tirou a camisa do parceiro e foi ao banheiro para se lavar. Quando voltou, o parceiro o esperava com um pedaço de perna-manca. Ele recuou assustado, mas não o suficiente para não ser atingido pela madeira e pelo prego que ficava na ponta. O rosto dele foi rasgado de ponta a ponta.

Ele caiu de joelhos no chão. O algoz o chutou nas costas e ele caiu com o rosto no chão. Desesperado, ele pedia por um espelho. O agressor ria, extasiado com a situação. Um pé atingiu o rosto do rapaz. O sangue se espalhou no carpete, que ele escolhera com tanto cuidado, até virar uma mancha vermelho-escura horrenda. O algoz rasgou as costas dele com o prego e rasgou o corpo todo. No fim de tudo, ele estava tão dilacerado, que procurar 20 centímetros de pele inteira, intacta era um milagre.

Ele ficou jogado no chão por dias e dias. O sangue secando no carpete, o fedor invadindo o ar, a poeira se empilhando nos móveis. A mãe surgiu nas suas lembranças: Séria, louca olhando para o rio, esperando pelo pai dele. Os outros pescadores explicavam a ela que o pobre homem tinha morrido afogado. Ela não ouvia. Um dia, ele iria voltar daquelas águas terríveis para ela. Ele voltou, um dia. O corpo inchado, o rosto comido pelos peixes. Ele voltou, ela repetia aos filhos. A filha caçula se matou uns cinco anos depois daquilo.

O outro filho mais velho viajou para a cidade grande. Lá ele dormia com homens novos, homens velhos em um trajetória vertiginosa que foi parar naquele tapete ensaguentado. A pele dilacerada. Cada movimento era um martírio. O rosto dele, refletido em um armário o enchia de terror. Onde estava o rei de todos os homens e mulheres? Onde estava a glória daqueles dias dourados? O horror subia, acompanhado da bile, para a língua dele. A voz amarga do horror repetia no seu ouvido, o nome de todos os inúmeros amantes que ele teve em vida. Em ordem alfabética.

Alberto, um homem careca, de voz baixa. Gostava de ser amarrada no espelho da cama e apanhar como uma vadia. Depois, ele chorava como uma criança e se abraçava com os travesseiros vermelhos.

Bruno, voz grossa, pose de machão. Colocava o nosso homem retalhado de quatro e metia o pau com tanta força que o fazia gritar desesperado. Os gritos chicoteavam o lustre de vidro que ficava sobre a cama.

Clóvis, bichinha pequena, de voz afinada. Alguns anos depois, ele viraria Cláudia em alguma cidade européia. Depois, ele voltaria a ser homem e . sem seguida, mulher de novo.

A lista era imensa. Não cabe reproduzí-la aqui. Ele andou pelo apartamento. A dor era tanta que ele nem sentia mais. Olhou o espelho do banheiro. No presente, quando a mulher da piscina o visitou, ele estava olhando para o mesmo espelho. As cicatrizes formando um mapa hediondo pelo corpo dele. Ele cumprimenta a amiga e a convida para sentar. Os sinos da catedral ao lado reverberam nos vidros da casa. Ela tampa os ouvidos.

Ele explica a amiga que pretende morrer logo. Existe um armário; no armário há uma caixa de madeira; na caixa de madeira há uma arma; dentro da arma há 6 balas; dentro das balas há pólvora.Dentro de duas ou três semanas, a faxineira encontrará o corpo dele, semi- decomposto em uma banheira. A água vai estar vermelha. A serviçal irá gritar desesperada por socorro. As cicatrizes dele estarão de uma cor estranha na água.

O enterro dele vai ser o menor que o cemitério já teve naquele ano. Uma mulher com olhar perdido vai jogar uma flor no caixão. A flor vai estar seca. A mulher é a mãe dele. Durante o velório, o corpo dele estava cinzento como o do seu falecido marido. O filho substitui o pai. Uma por uma, as pessoas foram embora do velório do homem. Muitas já tinham visto aquele homem nu, mas jamais trocaram meia palavra com ele. O cheio de cloro era forte no enterro.

O cheiro de cloro é forte demais na piscina. As crianças saem enrugadas da água. Uma chuva cai e apaga o fogo do churrasco. Uma lona é suspensa para não deixar que o fogo se apague. Da floresta, sai o barulho dos aves. Um pássaro de penagem azul voa pelo céu e bate em uma árvore. Os espinhos o perfuram. O coração dele é perfurado por muitos espinhos. O cadaver cai no chão e os dias passam.

O corpo azul dele vai se decompondo na terra marrom. As órbitas dos olhos secam, a barriga se enche de vermes amareços, o esqueleto fica exposto. Os ossos se misturam com a terra. O corpo afunda. Novas camadas de terra crescem sobre o pássaro. Lá embaixo, o corpo dele é mais um entre outros que irão servir de adubos para os pinheiros.

O dia começa a escurecer. As pessoas começam a deixar a sede. Os carros levantam poeira. Os portões são fechados. O gerador de ondas é desligado. A água se acalma. Alguns navios de papel continuam na superfície da água, até desmanchar e se tornarem apenas papel molhado.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Um lindo novo dia

Ela acorda e põe a mão na barriga para sentir o estômago. Ele não doeu essa manhã. O sol entra pelas frestas da janela e ilumina a poeira do quarto. Não é uma luz laranja como as da manhãs de sol. É uma luz acinzentada, opaca, sem vida, mas forte o suficiente para trazer um pouco da manhã para o quarto.

Uma avenida aparece na TV, um homem em chamas corre na direção do expectador. A família toma um café delicioso. O pai agradece a mãe pela refeição, e ela lhe dirige um sorriso torto e deformado. Um cachorro late lá fora.

Um ninho de abelhas é incomodado pelos vizinhos. Uma vara gigante de madeira perturba a colônia. As pessoas lá embaixo, dão gritinhos de expectativa. Quando a colméia se espatifa no chão, os guerreiros voam para salvar a sua rainha, mas são detidos por um poderoso inseticida. A rainha agoniza no chão, o ventre inchado de vida. Uma criança pisa nela e espalha uma sujeira amarela na rua.

Uma bicicleta passa por poças de lama. Noite passada, houve uma grande tempestade por ali. A energia elétrica apagou e , por vários minutos, as casas foram iluminadas pelo horror dos raios. As crianças acordavam com a luz e o barulho dos trovões e choravam pelos seus pais que, impotentes, explicavam que tudo ia passar. Bem, eles não tinham certeza.

Na mesma noite, uma kombi lotada de evangélicos rodava a cidade para pregar pela cidade, a palavra daquele que morreu na cruz e o seu pai. Muitos dos que estavam na kombi, estavam experimentando a sua primeira vez naquela magnifíca de fé. O medo subia pelos corpos deles. Alguns tremiam. Um irmão mais experiente explicou que era normal.

A palavra do senhor era distribuida na forma de um pequeno papel de formato retangular. Nele havia a história do primo de Jesus, João batista. O papel era uma licensa poética contando os pensamentos finais desse grande profeta, no cativeiro, a mercê de homens e mulheres mundanos, a sorte dele estava chegando ao fim e a fé era a sua unica arma.

Dias antes, ele havia encontrado o filho de Deus, nas margens do rio Jordão e o batizou. Uma pomba branca desceu do céu para confirmar a validade do ato. Quando a silhueta daquele homem ia se perdendo no horizonte, João Batista enxergou a sua sina e a dele. Ambos iam ser mortos. O maré de areia do tempo iria apagar a verdadeira história.

Misericódia, Pai. Ele se ajoelhou , horrorizado, nas margens do rio e gritou por misericórdia por ele, pelo seu primo e tudo mais. Algum tempo depois, ele foi preso por um rei adúltero e foi jogado em uma cela escura. Uma dança exótica decidiu a sua sina: sua cabeça em uma bandeja para a princesa Salomé.

Ele olhou pela janela de sua cela. Estava escuro demais. O mundo inteiro dormia. Pela manhã, os pássaros iriam cantar a música de Deus, o orvalho encheria o ar, as vozes tomariam o lugar do vento e ele não estaria mais lá. Era o fim, mas era um fim digno. As pessoas lembrariam da palavra forte dele. O pai ensinaria ao filho; o filho ensinaria ao filho do filho; o filho do filho ensinaria ao filho do filho do filho. Era um consolo para quem viveu a vida inteira só e cresceu no deserto.

A triste, mas edificante história do batista de jesus era distribuído pelos evangélicos para os doentes, leprosos, filhos da puta, obesos, putas, cavajestes, desgraçados, artistas indepedentes e toda a escória do mundo.Houve casos que o receptor da palavra não tinha pernas, nem braços. Dessa forma, os folhetos eram enfiados na boca ou nos umbigos desses coitados.

Os jovens evangélicos, que antes eram temerosos, agora se enchiam de orgulho ao ajudar aqueles pobres homens. Ás vezes, irmã Vanda parava a kombi para eles rezarem. Os irmãos apertavam as mãos com força por causa do significado daquele momento. Irmão Wagner então tocava uma linda melodia contando a forma que Davi reencontrou o Senhor dos seus tempos de pastor em que acordar e sentir o cheiro das coisas vivas era a maior das recompensas.

Irmã Marieta era uma das que mais se emocionava. Ela tinha a metade do rosto deformado por um marido violento que, bebado, incendiou a casa com os seus dois filhos menores. Ela encontrou em Deus, a reposta para o seu luto, para as suas indagações e , em troca, virou a mais fiel soldada dele. Disposta a desembainhar qualquer arma para lutar por ele. Na hora do canto de Davi, ela lagrimava, esperneava, gritava, falava em línguas desconhecidas.

Naquela noite, porém, as coisas foram diferentes. A kombi não completou metade do seu percuso, quando uma tempestade terrível começou. A água parecia a ponto de romper os vidros da kombi. Eles rezaram, rezaram, rezaram, mas o som do trovão era maior, mais terrível. A luz dos raios iluminava o interior do automovel de forma assustadora. Rezar era demais, o ideal nessas horas era morrer de medo.

Uma bandeira tremeluzia de forma agourenta em um mastro. Vinte seis ou vinte quatro estrelas, eu realmente não sei, mas o pano desgrudou e voou , derrotado, pelo céu até cair em uma vala, onde, pela manhã, seria a honorária companheira de merda de cães e água do esgoto. As pessoas dentro da van se calaram. Irmã Marieta estava muda de horror e sentia todo o vazio da sua existência. Feia, deformada, acariciando mendigos para acalmar o animal que vivia dentro dela, animal esse que chorava pelo horror do sexo, da fornicação secular, do pecado.

Ela se encolheu um dos bancos, diminuída.

A chuva parou pela manhã. A kombi voltou a andar. Os buracos das ruas estavam cheios de águas, os carros passavam por cima e molhavam pedestres desatentos. O sol brilhava pálido no céu, logo ele ficaria forte o suficiente para secar a água da vala, enxugar as folhas das plantas e iluminar o dia dos filhos de Deus. Isso encheria o coração deles com muitas lições de amor, paz, companheirismo e superação.

Até outra terrível tempestade.