quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Búfalos 1 de 1

O Curiaú, outrora ,foi um quilombo. Meu entrevistado afirma e ainda diz que até hoje o local ainda sobrevive como um último porto de seguro para os negros. Ele afirma não se orgulhar das raízes dele. Não pelo fato de ser negro, mas pela pouca disposição que os seus irmãos de raça tiveram para se livrar das correntes, mesmo quando essas foram destrancadas.

Eu questiono ele a respeito das milhares de coisas que contribuíram para os negros continuarem escravos e ele balança a mão com impaciência, dizendo que isso é papo para boi dormir. A uníca saida é o trabalho, ele prega esse lema para tudo o que faz para sí próprio ou para as pessoas que o cercam. Durante os dias em que esta incrível reportagem sobre o curiaú foi confeccionada, ele repetiu o maldito lema para toda situação que aparecia na frente dele.

Primeiro foi com a neta que chegou com o coração destruído em casa(viúvo, ele mora com um filho, cinco netas e a esposa do filho), ela tinha sido chifrada pelo namoradinho que a tinha trocado por uma qualquer.A moça fez um escandalo e amerressou umas coisas contra a mãe que a ameaçou com umas palmadas. O meu entrevistado atiçou a mãe da garota até a mocinha apanhar."Galinha nova a gente corta pela asa" ele fez um gesto com o dedo,imitando uma tesoura. Enquanto a moça chorava, ele explicou que a única saída é o trabalho.

Durante as nossas entrevistas, ele estava trabalhando em dois pequenos caminhões de madeira para os dois netos. Os caminhões serviriam para as crianças aprenderem sobre o valor do trabalho ainda na idade tenra. Eu perguntei qual era o brinquedo favorito dele quando criança e ele respondeu que não tinha. A obrigação sempre vinha em primeiro lugar, além do mais havia uma linda lagoa para ele brincar. Brinquedos eram obsoletos.

Fazia um bom tempo que ele sofria de depressão. Eu perguntei da nora se o motivo era a perda da esposa que tinha morrido tão recentemente, mas não era. Ele era assim desde jovem. O marido disse a ela que as crises haviam começado na infância deles e dos irmãos. A vó deles tinha morrido e o pai passou dois meses catatônico. Quando a esposa tentava consola-lo, ele a reprendia com violência, dizendo que ela era uma puta e nem chegava perto da figura magnifíca que era a mãe dele. Um belo dia, tudo acabou e ele foi trabalhar.

A família ficou feliz por ver o pai levantar de novo daquele calvário, mas ele voltou pior, mais rigido, mais severo do que jamais fora. Um dia, dois dos meninos brigaram e ele os trancou no armário. Um amarrado ao outro para eles lembrarem do valor da fraternidade. Por baixo da porta do armário, ele sussurrava que as aranhas podiam morde-los e a dor iria durar vinte quatro horas.As crianças berravam de horror. Ele observava tudo sentado na cama.

Depois da primeira crise, a depressão passou a ser um visitante constante na casa da família. Ás vezes, durante uma ocasião feliz como um jantar qualquer, ele caía no chão, se contorcia, rasgava as roupas, chutava o pé da mesa, derrubando a comida sobre as pessoas que gritavam de dor,devido a temperatura dos alimentos. A esposa pouco falava, pouco opinava. Ela era cristã devota, laços além do amor prendiam ela ao marido, como uma maldição.

Apesar disso, os rapazes foram bem sucedidos em suas profissões. Talvez na ânsia de se livrar logo do pai, eles partiram para cidades bem distantes de Macapá. Alguns voltaram, outros mandam cartões alegres, dizendo como é bom a vida onde eles estão. O pai ri com sarcasmo e diz que eles só o visitaram, quando ele estiver de osso branco.Deus, no entanto, tem um castigo para cada filho ingrato.

Em uma noite dessas, ele teve um sonho que adora repetir para todos: ele estava morto, semi-afundado num dos diversos lagos do curiaú, nu. Apesar de odiar os seus irmãos preguiçosos, aquele lugar ainda é a mais bela das lembranças. O cheiro fresco da lagoa, as garças, o verde, as coisas morrendo e nascendo. Bem, de volta ao sonho, ele estava nu, como eu já citei.O peito para cima. Ele estava boiando da mesma forma que as pessoa bóiam no mar morto, sem jamais afundar.

Sim, a lagoa era mais densa que ele.

Ele estava morto, os peixes comiam a face dele e o resto do corpo até não restar mais nada. Agora ele era os peixes e vice-versa. Nadava em cardume, era pescado, comiam outros bichos submarinos ou não. Nada dispersava o cardume, pelo menos até os bufalos surgirem. Terríveis, gigantescos, eles destruiam tudo o que viam pela frente com o seu trotar interminável. O mato era pisado, as garças voavam, a terra tremia, os frutos caíam das árvores e o cardume era cruelmente separado.

O cardume se dispersava e cada parte dele era separada. A dor era terrível. Terrível demais até para um sonho. Então ele acordava desesperado, ligava o aparelho de oxigênio, enchia a mão de remédios e repetia para si mesmo que a única saída era o trabalho.

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