quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A piscina

Era uma vez, uma imensa piscina. A água era azul e uma espécie de gerador criava pequenas ondas artificiais para sacudir os banhistas e tornar a experiência do banho agradável para todos. Dez horas da manhã e a piscina estava cheia de banhistas de todas as idéias. O sol refletia nas bóias coloridas, nos músculos dos belos rapazes, na pele oleosa das belas mulheres, nos dentes das belas crianças.

O lugar era cercado por árvores coníferas, plantadas ali para dar um clima meio americano para o local. A vegetação nem sempre foi essa. Antigamente, as árvores dali eram árvores grandes, tortas, tronco grosso e os galhos eram cheios de um limo escuro fedorento. Com a construção da sede dos vendedores de cosméticos( onde ficava a piscina), esta vegetação deu lugar a algo mais esteticamente plausível.

"Os cones" explica a diretora do local " trazem uma aparência mais light para o local e transmitem as pessoas, a sensação de que eles estão na Carolina do Norte, onde fica a nossa matriz. Nós possuímos 250 sedes dessas, espalhadas pelo mundo todo. Há cones em todas. Padrão, sabe? Eu me sinto emocionada por fazer parte de algo tão grande. Desculpa, isso não são lágrimas. Caiu um cisco no meu olho"

Os banheiros da sede foram premiadas por uma revista local. São limpos, adequados, cheirosos e possuem muitos espelhos. De 30 em 30 minutos, um gás cheiroso é expelido por um desodorizador automático e limpa o ar com um cheiro de margaridas do campo. Na verdade, as flores não são tão cheirosas quanto os seus clones químicos que levam os seus nomes. Mas isso importa a poucos, na verdade, não importa a ninguém.

Uma unidade de primeiros socorros está sempre de olho na piscina. De vez em quando, alguma criança sem limites, começa a tossir de forma preocupante na água.Um salva-vidas pula na água e levanta o candidato a afogamento pela nuca para salva-lo da morte. As mães agradecem e espancam as crianças para elas não repetirem esse péssimo comportamento no futuro.

Em uma das bordas da piscina, está uma mulher, deitada em uma cadeira branca. Um guarda-sol a protege da luz. Essa exposição não é interessante para ela pois o corpo dela está cheio de falhas e mostra-las não a deixa feliz. Houve um tempo em que ela era tão linda que podia pedir a vida de qualquer homem descamisada que estivesse naquele amontoado de cloro, urina e gente idiota. Mas essa época não existe mais. Hoje, só resta a ela, o peso do tempo e as suas muitas sequelas.

Ela sente o banco desconfortável demais e tem vontade de chamar um dos garços, mas a voz dela anda meio falha esses dias. Não é faringite, nem alguma daquelas doenças que afetam a garganta. A semana que passou foi bastante estressante para ela e para a sua garganta. Segunda, ela abriu a janela e levou um ar frio bem no meio do peito. Começou a espirrar e ficou de cama até quinta-feira. Foi terrível sair de casa, ainda com os efeitos da gripe, e receber o sol bem no meio do rosto. O suor caía, gelado, do seu rosto.

Ela resolvera visitar um antigo amigo da juventude. Ele morava, recluso, em uma casa perto da dela. Quando jovem, ele era o desejo de homens e mulheres. Ele e ela eram os reis da festa. Um dia, ele levou um amante para a sua casa, tirou a camisa do parceiro e foi ao banheiro para se lavar. Quando voltou, o parceiro o esperava com um pedaço de perna-manca. Ele recuou assustado, mas não o suficiente para não ser atingido pela madeira e pelo prego que ficava na ponta. O rosto dele foi rasgado de ponta a ponta.

Ele caiu de joelhos no chão. O algoz o chutou nas costas e ele caiu com o rosto no chão. Desesperado, ele pedia por um espelho. O agressor ria, extasiado com a situação. Um pé atingiu o rosto do rapaz. O sangue se espalhou no carpete, que ele escolhera com tanto cuidado, até virar uma mancha vermelho-escura horrenda. O algoz rasgou as costas dele com o prego e rasgou o corpo todo. No fim de tudo, ele estava tão dilacerado, que procurar 20 centímetros de pele inteira, intacta era um milagre.

Ele ficou jogado no chão por dias e dias. O sangue secando no carpete, o fedor invadindo o ar, a poeira se empilhando nos móveis. A mãe surgiu nas suas lembranças: Séria, louca olhando para o rio, esperando pelo pai dele. Os outros pescadores explicavam a ela que o pobre homem tinha morrido afogado. Ela não ouvia. Um dia, ele iria voltar daquelas águas terríveis para ela. Ele voltou, um dia. O corpo inchado, o rosto comido pelos peixes. Ele voltou, ela repetia aos filhos. A filha caçula se matou uns cinco anos depois daquilo.

O outro filho mais velho viajou para a cidade grande. Lá ele dormia com homens novos, homens velhos em um trajetória vertiginosa que foi parar naquele tapete ensaguentado. A pele dilacerada. Cada movimento era um martírio. O rosto dele, refletido em um armário o enchia de terror. Onde estava o rei de todos os homens e mulheres? Onde estava a glória daqueles dias dourados? O horror subia, acompanhado da bile, para a língua dele. A voz amarga do horror repetia no seu ouvido, o nome de todos os inúmeros amantes que ele teve em vida. Em ordem alfabética.

Alberto, um homem careca, de voz baixa. Gostava de ser amarrada no espelho da cama e apanhar como uma vadia. Depois, ele chorava como uma criança e se abraçava com os travesseiros vermelhos.

Bruno, voz grossa, pose de machão. Colocava o nosso homem retalhado de quatro e metia o pau com tanta força que o fazia gritar desesperado. Os gritos chicoteavam o lustre de vidro que ficava sobre a cama.

Clóvis, bichinha pequena, de voz afinada. Alguns anos depois, ele viraria Cláudia em alguma cidade européia. Depois, ele voltaria a ser homem e . sem seguida, mulher de novo.

A lista era imensa. Não cabe reproduzí-la aqui. Ele andou pelo apartamento. A dor era tanta que ele nem sentia mais. Olhou o espelho do banheiro. No presente, quando a mulher da piscina o visitou, ele estava olhando para o mesmo espelho. As cicatrizes formando um mapa hediondo pelo corpo dele. Ele cumprimenta a amiga e a convida para sentar. Os sinos da catedral ao lado reverberam nos vidros da casa. Ela tampa os ouvidos.

Ele explica a amiga que pretende morrer logo. Existe um armário; no armário há uma caixa de madeira; na caixa de madeira há uma arma; dentro da arma há 6 balas; dentro das balas há pólvora.Dentro de duas ou três semanas, a faxineira encontrará o corpo dele, semi- decomposto em uma banheira. A água vai estar vermelha. A serviçal irá gritar desesperada por socorro. As cicatrizes dele estarão de uma cor estranha na água.

O enterro dele vai ser o menor que o cemitério já teve naquele ano. Uma mulher com olhar perdido vai jogar uma flor no caixão. A flor vai estar seca. A mulher é a mãe dele. Durante o velório, o corpo dele estava cinzento como o do seu falecido marido. O filho substitui o pai. Uma por uma, as pessoas foram embora do velório do homem. Muitas já tinham visto aquele homem nu, mas jamais trocaram meia palavra com ele. O cheio de cloro era forte no enterro.

O cheiro de cloro é forte demais na piscina. As crianças saem enrugadas da água. Uma chuva cai e apaga o fogo do churrasco. Uma lona é suspensa para não deixar que o fogo se apague. Da floresta, sai o barulho dos aves. Um pássaro de penagem azul voa pelo céu e bate em uma árvore. Os espinhos o perfuram. O coração dele é perfurado por muitos espinhos. O cadaver cai no chão e os dias passam.

O corpo azul dele vai se decompondo na terra marrom. As órbitas dos olhos secam, a barriga se enche de vermes amareços, o esqueleto fica exposto. Os ossos se misturam com a terra. O corpo afunda. Novas camadas de terra crescem sobre o pássaro. Lá embaixo, o corpo dele é mais um entre outros que irão servir de adubos para os pinheiros.

O dia começa a escurecer. As pessoas começam a deixar a sede. Os carros levantam poeira. Os portões são fechados. O gerador de ondas é desligado. A água se acalma. Alguns navios de papel continuam na superfície da água, até desmanchar e se tornarem apenas papel molhado.

5 comentários:

  1. está muito bom... e um tanto quanto viajante.. =D

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  2. Seus textos me revelam aquela vontade intíma de matar-me.
    Adoro...

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  3. Ola amigo parabens pelo blog, tem um bom conteudo, ja estou seguindo vc, gostaria que vc seguise meu blog, acesse http://garagem-jovem.blogspot.com

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  4. Que coisa louca... de novo!
    Apesar desse vício (bom ou ruim, depende do freguês) de iniciar a história de um jeito e depois pegar uma trilha completamente improvável, eu diria audaciosamente que vc é uma mistura de Luis Fernando Veríssimo com Jorge Amado e, claro, vc mesmo. Talvez eu tenha esquecido alguém nessa mistura literária maluca.
    Bjs... Ops,abraços. Kkkk!

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