sexta-feira, 30 de julho de 2010

Planeta Góes 8 de 9: O ex-agente cultural.


Dedicado ao Satanás e a Camila Karina, as únicas coisas boas dos meus tempos de agente cultural.

Sexta, 28 de março. Fui para casa de uma amiga e levei 10 reais para comprar vodka e skilhos. Na noite anterior, eu tinha recebido a pior das notícias e eu pretendia entrar em um profundo porre . Daqueles que eu não simplesmente não lembro por estar porre demais na hora. A festa ocorreu sem grandes excessos. Fizemos uma lasanha e depois todos dançamos ao som de Gretchen.

Algumas horas antes, eu tinha escrito a primeira parte dessa incrivel reportagem em nove capitulos. Sobre um cachorro que eu encontrei estraçalhado na rua.O animal não saía da minha cabeça, não deixava de me perturbar, nem durante o meu sono. Pela manhã, acordei com umas urticárias estranhas embaixo do braço.Liguei para um primo meu que está se formando em medicina e ele disse que existe um numero infinito de possibilidades para surgir urticária nas pessoas.

Meu primo me ensinou o ABC do melanoma. Eu decorei e ficava repetindo todas as noites antes de dormir. Um dia, eu poderia ser a vitíma ou qualquer pessoa que eu conheço. De qualquer forma, eu seria útil.A pessoa antes de morrer, poderia ouvir da minha boca o que era a doença dela e isso me tornaria especial .Meu primo sempre se preocupou demais comigo.Alguns meses antes, ele me ligou:

Ele: "E aí, primo?"

Eu: "Tô bem, apesar do meu drama pessoal."

Ele: "Qual deles?"

Eu: "O de sempre."

Ele: "Qual é mesmo?"

Eu:" Tu sabe."

Ele: "Sei?"

Eu : "Sabe."

Ele: "E a pandora?"

Eu: "Ela está bem"

Ele: " Tá estagiando?"

Eu: "Não, mas sou agente cultural"

Ele: "O que é isso?"

Eu: "São pessoas que zelam pela cultura. Eu escrevo uns textos para um blog falando de bandas, editais de cultura e coisas assim.Eu ajudo em umas festas também. É legal. Me sinto útil"

Ele: " Que bom, Igor. Mas não acho isso compatível com o teu comportamento. Isso te dá algum retorno financeiro?"

Eu: "Não, não dá esse tipo de retorno, primo. Eu não preciso de retorno financeiro.Além do mais, eu estou conhecendo muitas pessoas novas que me ajudam no meu crescimento como pessoa. Tu ia gostar, primo. Tu ainda tem aquele violão? As pessoas que eu trabalho gostam muito de violão, elas tocam de forma doce e despreocupada."

Ele: "Eu destruí o meu violão. Com uma faca. Uma corda arrebentou e feriu o meu rosto. Eu queimei os restos. Aquele instrumento não ajudava no meu crescimento profissional."

Bem, eu desliguei o telefone logo depois. O meu primo sabe como encerrar conversas.Ele é bastante pragmático e correto.Bem, vamos voltar ao assunto do primeiro paragrafo. É necessário antes que eu recontextualize o leitor no texto novamente. Essa é uma regra para um bom texto jornalistico: Sempre relembre o leitor do que você está falando, pois ele tem uma péssima memória.

Eu estava em uma festa, bebendo vodka e comendo lasanha.Estavamos jogando baralho, quem perdia no jogo tinha que virar a vodka. Eu sempre ganhava. "Que sorte terrível e na hora errada. Eu me odeio". Acabei tomando a bebida de quem perdia e de quem ganhava.Eu estava tonto e louco. Adoro andar bebado e refletir sobre o meu drama pessoal e foi o que eu fiz.No caminho, eu ia despejando o meu horror existencial em tudo o que eu visualizava.No supermercado Favorito, na caixa d'agua do buritizal, nas crianças e tudo o que eu lembrava.

Um palhaço( um profissional palhaço, não uma pessoa engraçada) me parou e perguntou se eu podia ajudar ele a divulgar a peça que ele estava fazendo para ajudas crianças com câncer.Eu peguei no ombro dele e disse que a minha tia morreu de câncer. Perguntei como ele tinha descoberto isso, justamente naquele local tão escuro, tão sombrio onde o horror e a mágoa eram os meus únicos companheiros.Eu ri para ele e o abracei. Ele me abraçou também. Eu disse que poderia ajudar a divulgar a peça dele e tudo mais.Ele me perguntou se eu ainda me reunia no Espaço Aberto. Não, eu não me reuno mais no Espaço Aberto, eu disse a ele.Como são essas crianças? Elas são terminais? Devem ser,né? Eu sei o Abc do melanoma. Eu sei como começa, eu sei como termina. Elas podem rir agora, mas amanhã elas vão estar encaroçadas demais para rir.

Algumas vezes, o caroço cresce no rosto. Ele fica imenso. O fedor é insuportavel. Do que vai adiantar essa peça? Do que vai adiantar se degradar por aí, vestido de palhaço? Do que vai adiantar abordar gordos bebados no meio da rua? Do que vai adiantar se reunir para falar da sua peça? Você devia se vestir de branco e fazer campanha para eutanásia. Sim, seria melhor para essas crianças. O palhaço me olhou com nojo e repulsa e eu vomitei em resposta.Virei de costas e continuei a minha andança pela rua.

Um carro passa rua, umas pessoas chamam o meu nome. Eu pedi do fundo do meu coração para que elas morressem.Fechei os olhos e visualizei os corpos deles nos destroços.Caldo de sangue.Muitos pedaços. Algumas pessoas chorando, outras socorrendo. O palhaço do câncer com a roupa melada de sangue tentando puxar o braço de alguem. O braço sai, a pessoa não. Um cachorro preto esfomeado e sedento bebendo o sangue deles. Isso, eu pagava para ver. Por isso, eu me reuniria de novo no espaço aberto. Não, isso não é um bom pensamento. Caia na vala, seu miseravel.

E eu caí. Literalmente.

Não acreditei na cena; não acreditei na dor; não acreditei no inchaço que estava começando a formar no meu tornozelo. Liguei para emergência. 911. Nada. Não era esse o número. Esse é o número dos EUA. George Clooney não poderia vir tão longe de mim para me ajudar. Liguei para minha mãe. Ela me mandou um taxi me buscar. O taxista estava ouvindo uma música, a tradução vinha logo depois da frase.Que cafona. Eu quero morrer. Eu preciso morrer.Antes que esses favelados peçam mais músicas.Músicas com tradução simultânea. Preciso morrer de câncer. Melanoma. Eu sei o ABC do melanoma. Essa doença me deve uma morte dolorida. Isso seria um show bom para se ver. Sim, se o palhaço do câncer me pedisse para promover esse espetaculo, eu faria com muito, muito prazer. Eu, inclusive, reuniria no Espaço Aberto de novo.

Cheguei em casa. Pulando de um pé só. Deitei no sofá. O quadro sem eira, nem beira que ficava na nossa sala passou a ter sentido de mim. Um rio.Correndo ao contrário. Os bois tentam beber da água amaldiçoada, mas a velocidade da água mutila os seus focinhos. Meu avô falou de um primo distante dele que cuidava do gado em uma fazenda. Mudando os bois de lugar. Do alagado ao seco. Durante a travessia, os gados começaram a cair. Algum mal desconhecido os fez cair, mas não os matou. Uma doença terrível. Seria câncer? Não, câncer não é contagioso.Isso eu posso afirmar. Eu sei o ABC do melanoma. Eu conheço o câncer.Era uma ferida aberta que crescia no abdomem.Não era câncer.

O bois passaram a noite urrando de dor. A dor fazia os esfincteres relaxarem. O gramado estava cheio de merda.Os homens se dividiram para sacrificar os bois. Um tiro na cabeça de cada boi e quando acabasse a munição, o jeito era usar a faca.Essa tarefa lhes custou a noite inteira e um pouco da manhã.Quando terminaram, um deles desatou a chorar, disse que tinha sonhado com isso na noite passada. Um sonho turbulento.

De nada adiantava, os bois estavam mortos. A grama suja de sangue. A minha perna estava quebrada.

Fui levado para o pronto socorro.Meu tio me levou. Saí saltitando do carro até umas cadeiras de rodas que estavam na frente. Duas pessoas me ajudaram a chegar na cadeira. Me sentei aliviado por não forçar mais a minha perna direita. Fui levado para emergência. Uma médica sonolenta me atendeu. Olhou com desinteresse para o meu inchaço. O braço dela tinha uma mancha estranha. ABC do melanoma. A de assimetria. Será que é o caso dessa mancha? B de borda.Não, não pode ser.Nem tudo é câncer. A médica me passou um injeção de cataflam e mandou tirar um raio-x da minha perna.

Fui para uma pequena fila na hora da radiografia. Na minha frente, um homem com aqueles negócios de por no pescoço de pessoas quebrada. Um policial o interrogava e o homem mal conseguia responder as perguntas. O policial o cutucou com o cacetete e ele gemeu de dor. Eu esperei ele entrar na sala de raio-x temendo ter que deitar na mesma maca que ele para tirar o raio x e foi o que aconteceu. A mulher do raio-x posicionou o meu pé da forma desconfortavel possivel para a chapa que saiu errada duas vezes.

"Ele quebrou a fíbula",explicou a médica como se estivesse falando de uma verruga qualquer. Olhei desesperado para o meu tio para saber o que osso era esse e ele me explicou que não era um osso tão importante e que em dois meses, eu estaria andando de novo.Dois meses. Eu fechei os meus olhos e pensei no horror que eu teria de enfrentar pelos próximos meses.Fui levado para ser imobilizado. Uma enfermeira de expressão nula me ajudou a por em uma maca. Ela conhecia o meu tio.

"Meu Deus! Olha o tamanho desse menino! Nós temos uma fazenda na estrada que tem vacas do tamanho desse menino. Meu Deus. Muita obesidade.Coloca ele aí. Meu Deus, a maca rebaixou quando ele se encostou.Lá em cima tá cheio de gente, espero que ele não precise ser internado. Muita briga nesse sábado. Essa cidade está naufragando. Eu não aguento mais.Levanta a perna.Pelo menos, eu fui transferida da maternidade. Quinze partos por dia. Essas meninas não sabem se lavar. É cada paca.Não mexe a perna,menino. Não sei o motivo disso, eu morro de pena dessas crianças. Elas fedem muito. Eu fico imaginando em latrina suja elas foram feitas. O cheiro de peixe podre do esperma e esse monte de vagina podre. Meu Deus. Pronto, pode se levantar"

Foram dois meses, dois longos meses. Olhando pela janela, tomando banho sentado, odiando cada pessoa a minha volta com mais intensidade do que eu jamais senti na minha vida.Imaginei o palhaço rindo de mim. Ele e as crianças cancerosas. Todos eles no Espaço Aberto. Os dedos, cheios de tumores, apontando para mim. Oh sim, isso era um show bom de se ver. Minha depressão fazia o gado morrer, as flores secarem, as crianças chorarem. Minha mãe não suportou e me enviou para a casa do meu pai. Passei 15 dias lá.

Um amigo dele perguntou do meu pai se eu estava estagiando. Meu pai disse que eu era agente cultural. O que é um agente cultural?. Meu pai respondeu que são pessoas que ajudam tocadores de violão, hippies e dançarinos. O homem perguntou onde eu fazia essas coisas e o meu pai respondeu que não sabia, pois não falava comigo o suficiente para saber da minha vida. O homem disse que isso era triste. Meu pai concordou.Ele disse que tentaria fazer comigo um serie de programas para diminuir o meu tédio e quem sabe, nos reaproximar.

Ele tentou. Nós fomos em família para um terreno muito muito longe naTessalônica.Chovia muito na época. Meu pai nunca foi de falar e quando eu estou perto dele, eu dificilmente falo. Não é lucrativo. Silêncio ajuda a me manter livre do julgamento dele sobre as coisas, sobre o que eu sou, sobre quem eu me tornei, sobre o que vai ser da minha vida. No nosso caminho, algumas pessoas passavam com vestidos até o chão. Eram crentes, meu pai explicou com um sorriso de escárnio no rosto. Eu fiz uma piada sobre crentes e ele me repreendeu. Não é bom rir da crença alheia.No meio do caminho, ele me perguntou que papo era esse que eu queria morrer.Eu disse a ele que era verdade, que eu não via mais sentido em viver. O mundo é terrivel demais, pai. As pessoas são más, terríveis.Eu sou uma piada.A minha existência é uma piada. O que passarei aos meus filhos? Qual será o meu legado?

Ele disse que isso dependia de mim. Todo homem constrói o seu legado. Eu disse a ele que o meu legado já estava destruído e que eu queria apenas morrer. A maré destruiu tudo. Ele me perguntou se eu já tinha tentado me matar. Eu disse que não. Se a morte viesse, seria por conta própria. Ele me perguntou meu emprego de agente cultural. Eu disse que não era mais. Ele perguntou pela minha empolgação por ajudar as pessoas que eu exibia para todos. Eu disse que era falsa, eu entrei naquele circulo de idiotas por outro motivo. Qual motivo? Eu me calei e depois ri. Perguntei a ele se as pessoas acreditavam nessa minha vontade filantrópica de ajudar artistas esfomeados. Eu sempre soube que todos eles iam fracassar. A vida é perversa demais. O horror dessa cidade iria afogar aqueles artistas, aqueles jovens cheios de alegria com aqueles instrumentos se tornando reis de alguma coisa por um breve momento. Todos iriam esquecer daquilo um dia. Todos iriam fracassar. Um dia, eu iria encontrar eles por aí. Alguns deles formados, outros em alguma oficina , trocando pneus.Nada dá certo na cidade, nada funciona, nada cresce, nada floresce. E, de certa forma, eu gosto disso. Eu gosto do fracasso alheio. Eu gosto do meu fracasso. Me faz sentir vivo como poucas coisas.

Ele me perguntou por que eu passei tanto tempo discursando a respeito de ser um agente cultural, se eu pensava dessa forma tao terrível. O terreno da tessalônica é cheio de subidas e descidas. Os evangélicos daquela região permanecem isolados do resto da sociedade. A fé é o principal recurso deles. É o que alimenta os filhos, é o que faz as crianças correrem, as mulheres lavarem a roupa no rio e tambem é o que mantem a sanidade em um lugar tão isolado. Tão distante de tudo.

Meu pai lembrou de uma familia de crentes que morava do lado da casa deles. Eles tinham duas filhas. Elas cantavam no pátio, louvando Deus por todo o milagre que ele havia feito nas vidas deles. Um bom pai. Uma boa mãe. Uma boa casa. Uma das filhas precisou viajar para longe, para recife, eu acho. Ela passou um bom tempo deprimida lá, sempre escrevia para os pais, falando da falta terrível que eles faziam a ela. As férias de julho eram aguardadas pela familia. Todos estariam juntos. Não aconteceu. A moça foi assaltada, espancada, estuprada e assassinada.

A familia partiu da vizinhança dos meus avós para alguma outra cidade. Eles estavam acabados.

Alguns anos depois, o pai das meninas visitou o meu avô. Eu tinha oito anos. O homem contou de um terreno que eles tinham no nove. Nesse terreno, havia uma plantação de tomates.Quando a mocinha morreu, eles deixaram o lugar aos cuidados de ninguem. Agora que eles estavam de volta a Macapá, o local continuava como estava. A plantação de tomates intacta, porem mais selvagem. Ele fez um gesto com a mão para mostrar o tamanho do tomate.

É um milagre, ele disse. Nós concordamos.








3 comentários:

  1. uahuhahuauhauha igoorrrr

    que honra!

    Realmente, tomates assassinos são um milagre.

    Será que nao rola de agencia-los?

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  2. Como crente convicto e ironicamente fã dessa criatura que faz piadas sobre crentes repreendidas pelo pai, eis que te digo: escreve um livro, filho meu!!
    Eu comprarei e ainda ajudaria a divulgar.
    Boooom! Never stop!

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  3. Não que valha de algo... mas eu te acho genial. Não que valha de algo... mas sei que te envaideces.

    Chupa o meu pau.

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